sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Momentos a Fio

Aqueles que me tocaram a alma não conseguiram despertar meu corpo, e aqueles que me tocaram o corpo não conseguiram atingir a alma.

Um botão de camisa meio solto, precisando costurar. Há anos literalmente a fio, esquecido. A camisa que ele mais gostava. Agora coloco e me olho na frente do espelho, fico pequena dentro dela, enorme, branca, quase amarelada pelo tempo, encardida de mal lavagem.  Meu corpo era branco também, quase amarelado, confundindo com a camisa velha. Era um jeito de me sentir perto dele, havia ainda um cheiro muito vago do seu perfume. Embrulhei a camisa na mão e cheirava até a última linha, tentando resgatar alguma coisa como uma lembrança afincada ali, como alfinete. E vinham muitas, muitas boas lembranças, e logo iam para o mundo das lembranças de camisas brancas amareladas com um botão caindo.

Costurei o botão com linha verde, era a única que tinha na caixinha de costura da minha mãe. Quando pequena eu passava a linha na agulha pra minha avó que costurava a fronha da almofada. Foi com ela que aprendi a costurar e agradeço, vivo costurando coisinhas aparentemente inúteis a olhos lavados, mas não, são coisas agradáveis que só eu vejo e confesso, não fazem mesmo muito sentido. Uns dois ou três botões ainda costurei com linha verde, tinha um furo embaixo do braço que achei melhor deixar, a essas alturas mais vale um furo na camisa do que nas lembranças. Passei-a com ferro bem quente e tornei-a, mais uma vez, talvez a última, a vesti-la.
São coisas vagas que ficam remoendo bem no fundo de nossa mente, como um cheiro que lembra uma menina que estudou na quinta série com você, ou uma rua antiga da cidade onde passam lembranças de pessoas que te chamavam pra jogar bola e andar de bicicleta na infância. Ou ainda um toque de alguém que te arrepia a espinha e faz cócegas no pescoço. E logo passa, você se distrai com outra coisa, liga novamente o rádio e canta bem alto qualquer música nova das paradas. Como um momento atrás do outro, derradeiro. Como mais um dia que passa e virão mais, outros tantos mesmos, querendo ou não, de súbito, te impressionar, se você se deixar impressionar, ou não impressionar em nada, mesmo que seja uma borboleta. Nada a esperar, nem champagne, nem vinho frisante ou escova de cabelo com tufos de cabelo, mas incansavelmente, apenas um botão a ser costurado com linha verde e esquecido de novo, anos a fio, guardado no cabide.




 

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Vaga Ideia de Fuga Para Pessoas Descrentes

Sem grandes expectativas para o reveion. Sem grandes expectativas para a vida.

- mas o que importa são as companhias.
- exactamente, eu não tenho nenhuma.

e estou mesmo quase passando sozinha, fazendo fogueira no meio dos pinheiros.
ou estou mesmo quase colocando anúncio no jornal " precisa-se de acompanhantes para festa de ano novo"
se é que haverá festa. não deveria haver festas. acho que eu queria alguma coisa simples, como beber champanhe no capô do carro olhando o céu. 
respiro fundo. acho que talvez seja isso mesmo, sem grandes esperanças de final de ano, como sempre foi, mesmo criando ilusões de que mudaremos radicalmente de um segundo para o outro, essa contagem regressiva que muda a vida de ano, inutilmente, solitário.
gostei da idéia do champagne no capô do carro. repenso.
0,1% de chances de passar na casa da minha mãe, com aquele ar de tristeza pensando na morte da minha avó, meu peito doendo de dores psicológicas, minha falta de ar, o medo nocturno que passei a ter toda noite de fantasmas que eu mesma crio. está sendo uma morte lenta de cada um que eu odeio ter de presenciar, porque isso me crava o peito e nada mais faz sentido.
cada dia eu sei que vai ser sempre a mesma fome de alguma coisa que não existe, nem nunca existiu, só aquela mínima parte de alegria que a gente tira das pequenas coisas. a esperança de um ano novo deveria ser revertida para um dia-novo, cada minuto. a esperança esperada uma vez por ano acaba com as vendas dos 364 dias de nossas vidas. é difícil demais esperar uma coisa que não sabemos, completarmos mais um ano sem termos a mínima sensação de que o que passou realmente foi como desejamos naquele único dia fútil. eu passaria nua, deixando o vento e o calor levar os maus pensamentos e aspirações.
a única coisa que desejei nesse fim de ano foi passar as postagens do ano passado. - total: 114
e essa é a 114ª postagem do ano.
Nenhuma ligação. A boca ainda amarga de pasta de dente, eu odeio, me deixa sedenta. E bebo muita água e faço muito xixi.
continuo com a ideia fixa do champagne. ou vinho frisante, qualquer coisa, até leite puro bem gelado.
acho que já estou planejando, pego a moto, coloco algumas coisas na mochila. posso até fazer uma auto-sessão de photos de reveion. qualquer merda, qualquer coisa que não faça eu sentir dores no peito ou falta de ar. talvez fugir de mim mesma ou me encontrar tão eu que não me reconheça.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Som iluminado para os olhos

Um vidro quebrado era seus olhos
quando me olhava perto
A luz disfocava
jorrando para todos os lados
aquele brilho solar
ocular de misterioso eterno

Que vontade de acariciá-los
com ternura na ponta dos dedos
pra mim
só meus
assim negros
cinza escuro
assim grandes
ternos

Que vontade dormir segurando-os
como eu segurava sua cabeça bem perto da minha
para eu ter certeza de
que estaria tudo bem
está tudo bem
eu falava pra mim mesmo
enquanto ela dormia um sono quieto
sem murmuros
sem ruídos malvados
só a respiração
e o olhar agora escuro
fechado

O que teria visto aqueles olhos?
nem uma camera captaria tamanha beleza
nem seu flash era mais brilhante do que o olhar
nem o acontecimento maior que sua pupila
aumentando
diminuindo
como um gato

como que eterno
como um som embalando cada raio luz
mesmo que mais lento

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Entre Nuvens

É aquela nuvem que está chovendo.
Ela era a mais negra de todo aquele céu azul imenso, dentre outras nuvens lindas e pomposas parecendo algodão doce branco, ela era a única que chovia.
Eu chovia de alegria olhando aquele céu e pensando que eu poderia olhar o dia todo ele mudando de cores sem cansar nem um pouco, vendo os tons de azul que bem em cima de mim era um azul escuro e indo pro horizonte ele ficava mais claro, até chegar num azul-acinzentado. Nunca vi um céu tão lindo.
Até que parou de chover. A nuvem passou muito rápido por nós, ou nós passamos muito rápidos por ela. Se foi.
Entre o céu e a terra havia nuvens e nelas nada se sonha a vã filosofia.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Deixa

eu deixaria você se esconder atrás da porta para me assustar
e eu deixaria você fazer meu café da manhã
e pintar meu rosto com guache colorido
e escovar meus dentes
deixaria você repetir a mesma música o dia todo
e deixá-la no último volume
e rabiscar minha parede
e pular em cima de mim de manhã fingindo que é um bombardeio

e bagunçar meu cabelo
e comer meu chocolate
e tomar meu vinho
e meu leite gelado com sucrilhos

deixaria você andar na garupa da minha bicicleta
e me balançar na rede
ou no balanço
eu deixaria você rir da minha cara

deixaria você deixar que eu deixasse
e deixaria o céu se abrir pra
luz entrar
eu deixaria a lua ficar
e o sol amenizar

eu deixaria te amar
eu deixaria me amar

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

Afago

Quando você prendeu o cabelo em coque mostrando sua nuca macia e cansada que não cansei, nunca, de te olhar naquela luz verde de fundo que saía talvez de um motel qualquer numa avenida qualquer chuvosa, milhares de carros passando te embelezando ainda mais com sua luz dos faróis brancos-amarelos-vermelhos e freios, e você falava tanto e não me ouvia no meu silêncio do meu olhar que te comia, profundo, te cortava, quase queimava como faca em brasa, como marca. E você falava tanto e eu não ouvia sua braveza e você ficava mais brava porque eu te olhava com tanta paixão, talvez nunca eu tivesse te olhado assim, eu perdia o ar, meu fôlego, que triste eu era se respirasse tanto, porque eu gostava muito de chegar o nariz perto do seu pescoço cheiroso, já quase sem cheiro, depois do dia todo e era noite, nós naquela avenida movimentada, a chuva, meu amor, como você é linda, eu te olhava eternecida, os seus olhos, sua boca macia que me engole, seu queixo e pescoço e ossinhos do pescoço e seios lindos que me chamavam. Eu queria deitar no teu peito e dormir, dizer que te amo, queria chorar, queria te roubar e levar pra casa, já era hora, que saudade, as luzes respingando no pára-brisa que respingava em você as sombras das gotas parecendo uma pinta e logo sumiam, uma onça pintada, selvagem me devorando por dentro, eu bem sei, que você me devorava lá no fundo sem saber que eu te olhava. Minha vontade maior ainda era tirar sua camisa cor-de-rosa te beijar enlouquecidamente, o tempo parar, e rosear nosso amor sentir quente teus olhos brincando em mim, mas já era hora, porque se vai, em vão, cada segundo sem que eu possa, ao menos, colocando sob o céu infinito da noite, meu tempo parado em você.
E te beijei.
E fui embora. Já era hora.

Prelúdio

Como escreverei um romance se tenho preguiça de passar do terceiro longo parágrafo? Oh Céus. Que dilema. Que ambição.
Aguei-me no chuveiro, em prantos, lunática, escrevendo no box abafado as letras inicias do meu romance inexistente. Ou era o nome dela? Meu amor?
Não me daria nunca mesmo pra isso. Desista, pensei, me autoafogando no prelúdio do meu fim. E agora?
Nem romance, nem amor, nem nada. Até acabou a energia quando eu estava repassando minha cabeça ensaboada de champu. Ainda faltava o condicionador... e estava frio. Merda. Gritei, gritei gritei, griteeeei. Não tinha ninguém em casa mesmo, mas metade da rua ouviu, com certeza. Se o vizinho peida no banheiro dele eu ouço do meu quarto enquanto leio qualquer coisa, uma inspiração talvez. E ainda o casal de vizinhos brigando, em xingamentos agradáveis que vai desde biscate a vagabunda, coitada, pra senhora que já tem mais de sessenta, costura o dia todo e nem tem tempo de biscatear, antes tivesse. E sim, ouviram-me, desvairada, lunática, preludiando. Sai respingando, porque ainda tinha esquecido a toalha no varal. Corri na ponta dos pés, abri a gaveta e tinha um pitoco de vela. Está bem, muita calma. Respira. A toalha agora.
Ninguém ligou, nem um toque no celular. Essa força não voltava nunca, nem a eléctrica e nem a minha, berrei tanto que faltou sangrar a garganta, fiquei rouca, e tossindo.
Amém. Energia voltou. Meu romance não, nem começou. Talvez nunca comece. Eu já tinha até nome. Meu amor, meu amor ligou, está bem. Graças a deus. Diz que quer voltar pra mim.
- Eu também te amo.
E voltamos, sem romance, o meu, o nosso, ah, ah... o amor.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Vida-Morte

a chuva que engole o mundo
e você é um ponto inexistente em muitos pingos
acinzentados
plúmbeos
neutros

cada gota é uma vida nascendo
cada pingo no chão é uma vida que morre
milésimos
segundos

e na palma da mão se desfaz
anos e anos de respiração
o coração pára
a vida é outra
o sorriso não é
mas um vazio no peito
seco, respingado

Cada chuva
cada paixão
um fogo que arde e apaga
sem cor nem religião
sem credo nem esperança
apaga
sem qualquer aviso
sem qualquer permissão

terça-feira, 7 de dezembro de 2010

queria escrever o mundo
mas dizer apenas
que estou com sono
e que a noite é bela
faz mais sentido

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Da garoa que resta

Que estado profundo é este?
Pode o dia estar lindo
o céu azular na minha orelha
o sol avermelhar meu coração
e a folha cair no peito
a gota esfriar o seio
e essa angústia
inútil
continua

Estou farta de alguma coisa
comida demais
amor demais
condições demais
e o medo é sempre demais que nunca sai
da fila de onde retira a senha
porque é preciso respirar

abre a janela e vem respingos restados
do céu
ainda não é noite
ainda é quase dia
rediar a noite para nunca tornar a vê-la
renoitar, talvez
mas a angústia sempre virá
as asas negras de borboletas noturnas
teimam em queimar na lâmpada
e faz calor
e me cubro

Quem será que toca essa flauta?
E esse cheiro de cigarro insano
enlouquecendo os cachorros que passam debaixo dos postes laranjas da rua
deserta
nada de moscas
nada de matos
nada de ar poluente que mate de vez
o medo

E lá embaixo, além de latidos
crianças se escondem atrás de carros abandonados
dedos passam pelo vidro sujo escrevendo o futuro
cru de alguém que o lê
alguém
os pneus murchos
o retrovisor quebrado
minha visão embaçada

e não resta mais nada
só o vento
que balança meu cabelo
zumbindo no ouvido
mais um noite que chega
é  medo

sábado, 4 de dezembro de 2010

Daquilo que não é sabido

São sensações que vivemos
a fome
a morte
a solidão
o cansaço
a sede
o sono
e mais do que isso
vivemo-nos.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

É dezembro.

Dezembro te engole. O último passo pra vida. O último tempo do resto do tempo, é líquido.
Não sei se agora me projeto para frente, sendo, ou fico pra trás, sendo também. Dezembro é calor abafado, de suar embaixo do peito. Não gosto de calor.
Um vapor desmaravilhado atinge nossos peitos, somos bambu e balançamos. Quis ser tronco duro, mas ainda me sinto uma erva daninha. E talvez nunca saia disso.
Se eu fosse uma erva seria hortelã. Mas dezembro me queimou. E era só o primeiro dia. No último eu estaria como esqueleto de múmia ou petróleo no fundo do fundo do mar.
Nada é mais o mesmo. Tudo chega, um dia, e esse era o meu medo. De tudo chegar de uma vez e eu nem sequer ter saído. O vapor soprava sempre, zumbindo no ouvido feito pernilongo de calor em noite mais calorenta, dando tapas eternos no ouvido, sem nenhum efeito.
Antes disso era novembro, e chovia menos. Molhei sempre a ponta dos pés, porque o tênis estava furado. Uma sensação de alma pobre. Sensação de que eu era jogada a qualquer momento, e não percebia que eu mesma me jogava. Não, não aceitei. Alguém do meu lado deveria estar. Olhei e não havia gente. Desolhei e me já inteira molhada, o guarda-chuva do outro lado da calçada, um vento frio jogando as folhas coloridas pra lá e pra cá. Nenhuma imagem a ser construída. Nenhuma coisa a ser esperada, a não ser, sempre, o pior. Por mais otimista que possamos ser. E isso não é pessimismo, é medo. Camuflado de quem um dia achou, talez, por um momento, que é dono da verdade e descobriu que a verdade não existe, o que existe são fatos. As pessoas são fatos, erradas ou certas, verdadeiras ou falsas. E descobriu ainda que isso tudo daria em nada, porque o falso morre e o verdadeiro também.

Dezembro me abre os braços e eu tento engolí-lo com uma bocarra surreal que nunca antes eu havia feito. Inútil, sempre perco. Ainda é começo. Finais de dezembro. Nada existe em dezembro, nem em janeiro, fevereiro é uma página rabiscada e arrancada do diário da vida. Quando já me acostumo o ano acaba, já é outro, já me perco.
Às vezes o que me mata sou eu mesma.

















          me.

domingo, 21 de novembro de 2010

Passa, ave

"Esquecemos mesmo sabendo que estamos esquecendo. Pessoas, sentimentos, tudo vai embora, inclusive nós mesmos: tempo. Para sempre passa."
Às vezes eu acho que tudo que vivi e tenho como concreto me cai por terra em questões de segundos. Sempre vou achar que passa, e passa mesmo. Mas sempre volta de uma outra maneira, talvez mais dolorida, talvez nova de doer o coração. Passa quase não passando, como uma ferpa de roupa grudada no arame farpado

Inconforme

O céu azul pintado de nuvens brancas escassas e raras, diluídas na vida do mundo, me cobria como um manto cobre uma criança que dorme. O vento batia na minha cara enquanto eu corria pela rua deserta. O asfalto era quente e no ar misturava-se um cheiro de terra seca e vermelha. Meu pé esquentava a cada passo que eu dava. Chutava uma pedra aqui que às vezes ela ia longe, mas viriam outras pela frente. Eu corria e não me cansava nunca, as nuvens diminuiam o meu ar, mas meu pulmão explodia de alegria sentindo o cheiro da terra que pintava minhas narinas. Tossi. Engasguei com a poeira. Não sei porque meus pés não paravam nunca, como se fugisse de uma prisão a qual pôde só agora escapar, depois de anos, décadas, milênios. E se aquilo não fosse meu? E se eu estivesse pagando por um crime que eu nunca cometi?

Dias passados, talvez anos dilatados no tempo comprido de uma infinita gota que cai na pia suja do banheiro, dou-me por mim. Já não sou mais a mesma. Mudei. E mudar não necessariamente significa crescer. E crescer não significa mudar. Era eu então a mesma desde sempre? E o outro que me interfere?

Creio num deus. Não entendo como algum deus não aceita o amor. Não creio em homens que falam por deus. Destroem o mundo. Inútil tudo nessa vida: teremos o mesmo fim. Talvez justificará o meio? Esse meio sufocante, crimes cometidos, abusos psicológicos, miséria de essência, a solidão. Reduzidos em meros seres que respiram. O essencial é viver, clara manhã?

Por que me pergunto tanto coisas que já existem? E se eu devesse cometer algum crime, e se o sol nunca mais nascesse, e se as pessoas ... pessoas. Elas mesmas. Nunca.

Domingo é capaz de qualquer coisa. Qualquer ar diferente pra escapar dessa vida. E não é a morte, finalidade máxima do meu ser, mas renascer aqui, quem sabe outra, quem sabe nunca, quem sabe tudo.

Esse sol me deixa comovida. É um sol de domingo, nem forte e nem fraco, mas quente que dói o coração. Talvez o frio me aconchegasse. Sequer consigo ler uma frase alheia, sequer consigo olhar para os outros. Queria gritar, mas não posso. Só choro, meu deus, choro. Nem conhaque há. Nem beber eu consigo, somente essa coisa salgada que cai de um olho, depois o outro, numa sincronia. Vivo. O essencial é viver?

sábado, 20 de novembro de 2010

Cartas Tombadas - IV

Ah! Mariinha, se você soubesse o quanto meu coraçãozinho está machucado. O quanto eu continuo achando essa vida tão absurda, essa perda constante das coisas que dói eternamente, nunca apaga, nunca.
Queria você e o Lulu aqui do meu lado, a solidão é muita. A casa está vazia e me pego pensando em bobagens. Muitas bobagens de doer danadamente o peito. Tudo dói, Marri. Inclusive essa sua falta.

Estou triste, muito triste. Nada que me faça pensar o contrário. Nem uma faísca de memória boa do pôr-do-sol que eu vi hoje. Nada. A vida é nada. Nem sonho.

Lágrimas

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Momento

aqui, do meu ladinho, quentinho, na cama...

dos sete meses
do amor
do prazer

ah, esse corpo
esse calor
me engole
me tudo
me prende a boca com a mão
e a outra
hm, a outra
segura meu coração

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Cartas Tombadas - III

Dia de novembro.

Dias de calor, Maria. Dias loucos de calor. Mas hoje vai chover, o dia amanheceu cinza e já chuviscou nessa terra abençoada.
Você choverá na horta? E se eu morrer de secura?
Lulu deve estar com medo desses relâmpagos, que no céu, devem ser mais intensos. Pode ser que, cada vez que ele lata, um trovão se manifeste por aqui. Mas eu não sei. Nem sei se saberei um dia. Nem sei se existe céu, se existe vida, se existe isto, que chamamos de nós.
Mas eu e você existimos e eu confirmo isso, sabe como, bonictinha, porque a saudade que sinto de você é muito forte, então deve ser isso mesmo. Entendeu? Não importa.
Estou com fome, morrendo de vontade de comer aquela sua sopa de feijão. O resto ia tudo pro Lulu... que está enterrado no quintal da Antonieta. Sim, eu já te disse, na outra carta, mas repito, caso ela não tenha chegado ainda. Fome, estou com fome mesmo. Estou só, somente só. Se Lulu estivesse, estaria dormindo encostado no meu pé do lado do sofá. Que criatura agradável que ele era.

Mande lembranças.
Chova por aqui.
Chore por mim.

Abraços de lágrimas... boas.

sábado, 6 de novembro de 2010

Cartas Tombadas - II

Mariinha

O que é você sem mim, Mariinha? Trigo sem farinha?
Ou eu que não sou sem você, Mari- Maria- Mariazinha?
(O sol nasce pra nós
logo assim que se põe?)
Não ia te dizer, mas o Lulu foi enterrado no quintal da Antonieta.
Ninguém quis, como você queria, enterrá-lo no cemitério. Que cemitério não é lugar de cachorro.
É lugar de gente ? - perguntei-me. Por que se for lembrar daquela cadela da Marieugênia... convenhamos.
E a vovó não quis enterrá-lo no quintal dela, que é onde deveria de ser, porque não queria alma de cachorro assombrando as plantas. Mas ela disse rindo, assim, na verdade eu não sei porque ela não quis. E a Antonieta já está velhinha, tem outros cachorros, não se importou de o enterrarem lá. Logo é ela que vai pro mesmo lugar... mas pro cemitério, que é lugar de gente, de gente boa. Quando eu morrer quero ser queimado e jogar minhas cinzas pelo vento e colorir as árvores de preto e branco. Fim. Mais nada. Nem verme me corroendo nem olho esbugalhando. Não fiz isso com o Lulu porque senão... iam falar que é tudo do contra, que é pecado enterrar cachorro em cemitério, mas que também não pode queimar o coitadinho. Nem o céu, nem o inferno. Queriam ele na terra depois de morto.
Coitado. Ah, que saudade que me dá dele quando lembro de você e que saudade de você quando me lembro dele. Como se fossem um só. Só que você ainda em cima da terra e ele embaixo. O que não é de todo ruim, porque você é meu vaso colorido de flores vermelhas. Você é as própias flores. Você é linda, Mariinha.

Você é a gotinha de água que cai da nuvem e eu sou a terra que você molha e guarda o Lulu.

Um grão de beijo roubado molhado de terra.

Cartas Tombadas- I

Mariinha.

Escrevo-lhe para dizer que o Lulu ficou doente e morreu.
Poi sim, morreu.
Sequer latiu. Morreu feliz, com uma pomba na boca.
E isso é tudo.

Abraços cheirosos

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Dos Repousados Lábios Bonictos.

Dentro do ônibus lotado, indo pra lá e pra cá naquele mar de gente condensado, na balburdia, de repente, ela se deparou com  um moço sentado na sua frente. De pé, segurando no apoio amarelo e engordurado, viu o rapaz que dormia, encostado com a cabeça no assento. Ouvia música e parecia um pouco pálido. A barba por fazer, quase cinza, rala, contornava a boca, que era muito bonicta e desenhada cuidadosamente. Era também, uma boca quase pálida. Enfeitiçou-se. Ele sequer abriu os olhos durante a viagem. Entravam mais pessoas, apertavam, arrastavam o braço do outro, mas ela continuava ali, olhando a boca do moço que dormia. Sentiu vontade de beijá-la. O que aconteceria? Ela o acordaria do sono profundo, como uma princesa, num papel inverso das estórias maravilhosas? Ele dormia. Vontade louca de beijá-lo. Delicadamente. Abruptamente. Beijo inocente de quem apenas sentiu vontade de beijar uma boca bonicta. Não haveria problema algum. E os outros passageiros? Agora o ônibus corre atravessando a ponte. Já é noite, poucos carros estão nas ruas. Muitas gentes estão nos ônibus. Quando na vida haveria de encontrar outra boca tão delineada como aquela? E se encontrasse, estaria repousando, esperando o beijo da sapa? Não haveria. Lábios como aqueles, esperando serem beijados, não, não podia. O moço era careca. Que sereno seu sono. Dentro dela seria sereno? Fora era um barulho de gente cansada, densa. Quase dormiam em pé. Olhou quase todos que podia avistar, ninguém. Ninguém com boca de semelhança tão bela. Vontade de beijá-lo, vontade de beijá-lo. Não acorda, torceu. Queria beijá-lo sem que ele soubesse que seria beijado num ônibus, à noite, voltando pra casa talvez, depois do trabalho ou faculdade. Ela estava ali por acaso, quem nem sabia muito bem o porquê. Mas estava. Respirou fundo. Olhou para os lados. Passageiros sonolentos. Vento frio lá fora, deve estar frio, talvez pensassem. Inclinou-se um pouco. Rapidamente o beijou. Brusco. Num susto ele arregalou os olhos, os fones saltaram do ouvido. Olhou-a absorto, inconcreto, talvez estivesse sonhando. Ele não era um príncipe, muito menos ela seria uma princesa. Engasgou, não sabia o que falar, nem ele, nem ela. Os olhos dela baixaram, brilhando, felizes e com medo. Beijou. Mas chegou o ponto de descer. Tocou a campainha, sacudiu o corpo nos buracos das ruas. Um último suspiro, ele ainda estava dormindo e a boca, a boca meio aberta, respirando a noite fria.

Síntese

Difícil viver num mundo em que o tempo é diferente do tempo seu.

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Nada

Pra dizer nada em dias que são indizíveis. Silenciosos. O frio arrepiando a pele. Sem blusa. A noite chegou. Tem que dormir. Amanhã outro dia espera. Ou não. Pode ser que não, que espere outras pessoas, mas eu. Quem sabe. Abraça a noite como se fosse a última. Um grande dor no peito de nada. Não era nada. Boa noite.

sábado, 23 de outubro de 2010

Remova Inteiramente o Plástico Protetor da Bandeja

Bolognesa

Deveria ser domingo, dia de comer lasanha, ou macarrão com frango frito e salada de alface. Domingo tem cara de comida gordurosa. De entopir artéria, prazer e pensamento. Ainda se fumasse... deixava tudo fodido pra esperar que no outro domingo tudo faça efeito: fumaça e libido gordurosa do corpo. Assim já entopia tudo, saia dessa vida dominguera, de segunda à segunda correndo pra lá e pra cá sem saber pra onde ia. Mas não fumava. Vida infeliz. E beber, bebia? Às vezes uma lata de cerveja atoa. Gostava de suco, suco de melancia. Vodka? Energético? Só de pensar dava ânsia. Em tempos remotos foi desses que bebia pra caralho até vomitar a bile, ajoelhado no chão do banheiro com a cara na privada, coisa nojenta da porra. De vomitar até chorar de tanto abrir a boca e não sair nada, uma coisa gosmenta amarelada. E ele só tinha 15 anos, se achava o dono da mundo, o dono da vida na flor dessa idade rebelde. E deveria de ser mesmo, quem diz o contrário? Na cabeça a gente é quem quer ser. No coração a gente mantém aquilo que é da gente mesmo, a bolinha de gude eterna imutável, às vezes enferrujada dos males do mundo, cheia de camadas de terra.

Molho branco por cima

Era a chuva que vinha vindo? Porque ventava muito lá fora, de fazer barulho na janela, redemunhos de folhas secas, flores amarelas cobrindo as calçadas. "Eu me perco nessas folhas". Um tapete floral florido de folhas fofas. Secas, molhadas, moídas, pisadas. Parou. Não vinha mais nada na cabeça. Ele tinha, de vez em quando, um vazio absoluto dentro dele. De não pensar em nada, caminhar lento, quieto pela rua. Não era mais o dono do mundo, mas um cidadão qualquer que está por uma rua qualquer, em qualquer hora de um dia cinza. E era livre? Preso às folhas, se sentia livre. Elas não eram nada, nem ele. Elas não conheciam o mundo, e ele também não. A camada que ele tinha foi direto pela descarga, mas isso foi há muito tempo.

O queijo

Era fome e estava com pressa de sair. Só o queijo derretia rápido. A massa estava dura ainda. Meia hora no forno. Mais 10 minutos. 10 minutos é muito tempo, menino. 10 minutos são vida. Derrete essa cara de queijo amanhecido com soro escorrido no prato. Ainda precisava tomar banho, tirar essa zica.

A bandeja

 A bandeja se abre no momento que nascemos. Com ele não era diferente. Corta-se o cordal umbilical, tira-se o plástico. Mas com o passar dos anos a bandeja se fechava de novo. Ideologias perdidas, preconceitos, a própria dureza da vida, do velho amante engajado. Gostava das Artes e ainda assim se fechava. Ideologia nenhuma, sentido nenhum pra nada. Tinha olhares ensandecidos, pulava daqui ali desvairando um solo de guitarra, lutava contra o vento e a chuva enquanto brincava de escorregar no quintal. Era hora de ir pro forno? De tirar esse plástico novamente? Vai pra vida. Cozinha um pouco essa cara. Deixa esse calor te consumir, descongelar. E deixava mesmo. Queimou o dedo ao abrir o forno. Prontinha. Só comer.

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Dos Pequenos Grandes Olhares

Que olhos eram aqueles? Grandes e brilhavam me sugando com a luz do mistério. Era eu e ela. Amaciava o rosto com a ponta dos dedos, macia a maçã do rosto, dei uma mordida de leve. Me olhava com ternura e tentava me decifrar. Talvez ela fosse toda aberta, enquanto eu me abria aos poucos, como uma flor desabrochando na aurora, sentindo cada gota de vento me tocando. Sentia cada picada do amor que me tinha, que a tinha e me dava. E eu retribuia, em gotas, gotas certeiras, como veneno de cobra. Cada picada era calculada. Me deixava ser como seria. E sempre é. Sempre fui. Sempre vou. Cortando caminho no mato denso que era a vida. Não, sempre fui pelo caminho mais demorado. Mas ía, no olhar, negro, que me cortava como foice corta a cana, em câmera lenta, dois dedos de distância, enquanto a boca queimava o ar em volta. Queimando-me.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Carona no Guarda-Chuva

Desci do ônibus. Uma chuva meio fraca, com gotas caindo da cabeça bem na minha boca. Era noite. Poucas outras pessoas desceram do ônibus. Atravessei a rua, peguei meu guarda-chuva do lado da mochila, olhei pra ele, quebrado, senti vergonha de abrir e o segurei na mão. Atrás ouvi alguém me chamando. Olhei meio desconfiada, uma menina perguntando se eu tinha guarda chuva, e sem me deixar responder me ofereceu carona no dela, depois olhou minha mão e viu que eu tinha um.
- Quebrado, eu disse, não quis abrir... e entrei debaixo do guarda-chuva dela.
- Você sempre dá carona no seu guarda-chuva? - perguntei
- Sim... acho desumano ver alguém do seu lado sem um e você tendo espaço no seu...
Quando ouvi "desumano" já comecei a gostar dela. Que misteriosa. Caminhamos pelo caminhozinho feio até sair pelo portãozinho.
- Você faz o que aqui?
- Odonto. - respondeu-me. Silêncio, alguns passos. E você?
- Letras.
Silêncio de novo. Senti um perfume meio doce que vinha dela, era gostoso, me lembrava alguém. Me lembrou de relance alguém que conhecera no cursinho, uma menina, Ana, que na verdade tinha um perfume muito diferente do dela, muito forte e muito doce.
- Você mora onde?
- Sabe aque...
- Pra esquerda ou pra direita?
- Hm, bem... pra... (pensando que lado é esquerda e que lado é direta...) direta, depois direita de novo... e você?
- Pra direita também, mas depois sigo pela esquerda.
E desenvolvi uma rápida tese que a maioria das pessoas iam praquele lado dela.
- Eu sempre vou sozinha por aquele caminho feio, mas estou acostumada.
Já não estava mais chovendo. Alguns pingos esporádicos pela rua, mas continuei debaixo do guarda-chuva, meio corcunda, meio sem graça. Nunca na vida peguei carona em um. Descemos as escadinhas chatas, quase ninguém na rua, barulhos de pingos. Não a vi direito, estava escuro com aquelas luzes laranjas que iluminam metade da gente e a outra metade, já negra por dentro, continua a dormir. Ela estava de toca da blusa que era azul marinho, tinha uma franja curta, pele clara, rosto fino e o perfume. Carregava seu material, talvez uma bolsa, talvez não e segurava o guarda-chuva. Tinha um sotaque diferente que eu diria ser baiano, mas também não era. Nunca ouvi antes.
- Você é de onde?
- Goiás. E você?
- Do interior. Interior de São Paulo.
Quase na bifurcação ainda senti de novo um cheiro mais nítido do seu perfume. Ela não tinha me olhado nos olhos, olhava pro chão, vendo o caminho molhado. Talvez estivesse com medo de mim, ou vergonha. Mas deveria ser especialista em caronas a pé.
- Estamos chegando, você vai pra onde?
- Pra cá, apontei com a mão pra direita, e o seu nome?
- Érica.
Érica, Érica, com C ou com K? pensei comigo.
-... e o seu?
- Cássia. Bem, muito obrigada.
- Boa noite.
- Boa noite
E seguimos por caminhos opostos, ambas sozinhas. Talvez um rapaz ia na minha frente, de guarda-chuva, mas mal chovia e outro alguém ainda na frente do rapaz da minha frente, mas já o havia perdido de vista. Olhei pro poste para ver a intensidade da chuva, era fraca mesmo. De carona, balbuciava. O perfume se diluiu com o quase frio e com a quase chuva. Olhei pra trás, de praxe, ela já tinha ido. Encontraria alguém para dar carona? Rua escura, noite escura. Não a reconhecerei novamente. E segui, o guarda-chuva na mão, olhando para o céu, pensando nalguém tão humano que te acolhe com um guarda-chuva, preto, como todos, depois de descer do ônibus, mais uma noite, mais uma vez essa garoa, segui, concluindo minha rápida tese que a maioria das pessoas iam praquele lado dela, e não era totalmente verdade.

domingo, 26 de setembro de 2010

A Maçaneta

Entrou correndo no quarto e foi impedido bruscamente pela maçaneta da porta, que agarrou sua blusa e o puxou de volta para trás, num ímpeto, como se mandasse no quarto pequeno e sujo. 'Ah, me solta, filha da puta', e mais outros palavrões. Era só uma maçaneta. Muito ódio, não conseguia se soltar, quase desfiou a blusa, alargou, é facto, mas era uma maçaneta e nem vida tinha. Quem disse? Já nem lembrava porque entrou correndo. Parou, respirou, olhou a porta. Voltou. "Ordinária". Caminhou até a janela por onde entrava um vento gelado de domingo à noite, primavera, outra estação, ele continuava o mesmo.
Brisa gostosa. Lá fora tudo quieto. Todo um sono amparado pelo clima plúmbeo de domingo. Chuva. Céus. O que vim fazer? Olhar a janela?
E avistou do seu apartamento no último andar, lá embaixo, um casal passeando com seu cachorro. Um poodle preto. Pensou que odiava poodles. Achou incrível como na rua toda, de 20 casas, 19 tinham poodles, de maioria branca, pretos eram raros e latiam feito condenados quando se passava pela frente do portão com grade, pela prisão domiciliar tanto dos bichos quanto dos homens. Poodles irritantes. Ele latia também, irritado, brigando com os cachorros. Latia alto, chutava o portão, dane-se se alguém via, vai te catar, cachorro chato dos infernos. Até pensava, por bobagem, que na outra vida tinha sido cachorro, tão bem latia. Quis latir da janela lá em cima. Pra quê? O casal já se tinha ido. Coisa besta. Voltou-se para dentro, o quarto desarrumado. Hora besta. Vida vazia. O vento frio da janela o fez ter vontade incontrolável de fazer xixi. Apertou as pernas, segurou o pinto. Encurvou-se de novo, respirou fundo. Fechou o vitrô. Xixi quase saindo. Latido rápido, num arranque correu para o banheiro, porta semi-aberta, maçaneta amiga, enroscou-se. Mil palavras agradáveis. Latidos e uivos. E fez xixi na calça.

sábado, 18 de setembro de 2010

As mesmas coisas

" Que triste não saber florir"

Pareço estar meio assim, sem florir, sem saber escrever. Meio sem vontade, mesmo estando borbulhando por dentro. Como se eu mesma me impedisse disso e não houvesse nenhuma fissura de escape, qualquer furinho que deixasse escapar o vapor. Nada.

E se eu contasse dos meus causos? Talvez alguma coisa engraçada, um redemoinho, um constrangimento. Nada. Amores, delírios, sim. Isso sim, mas eu não conseguia traduzir.
Pobre. Me senti seca. Palavras curtas. Raios. Mas nem o sertão é tão seco assim. Um passarinho que morre e fica na rua, secando ao sol, sendo esmagado por carros e pés apressados.
E se ninguém me esmagava? Porque eu não escrevo sem apagar? Como era antes, como sempre foi. Porque agora eu era outra, tentava ser. Aquela que tenta ser organizada, que tenta crescer, levar um pouco mais a sério. Sem balanço nem gangorra, e isso era muito difícil. Se tivesse 30 anos ainda assim faria isso, porque a idade não quer dizer que você pode fazer as coisas e deixar de fazer outras. Você só deixa de fazer porque quer. Sempre penso que somos tão esmagados por conceitos inúteis de idade, sexo, cor, religião, sociedade. E eu também sou uma vítima disso, caso contrário não estaria aqui escrevendo, apagando, errando, fissurada na minha própria bolha líquida nem sei se colorida agora, mas sim preta e branca, em contraste.

Encontraste?
Insetos em volta da lâmpada, mas era dia. Mas era meio dia e ainda tinha mais doze horas para enfrentar, cara a cara com ela mesma. Mais doze pesadas horas que seguiam lentamente num ritmo acelerado, o coração pulsando a mil, as mãos suadas num tempo seco. Nenhum suor escorrendo na testa, mas por dentro o líquido borbulhava. Nada em volta mudou. Era enfadonhamente a mesma coisa todo dia, o caminhão do gás, o carro da pamonha, um anúncio de supermercado, o menino de bicicleta levando o pão numa cesta, a japonesa andando no quintal da sua casa durante muito tempo com o mesmo chapéu de sol. Quem era toda essa gente? O que era ela pensando nessa gente toda? Ninguém sequer imaginava que era pensado por outro alguém, outro alguém desconhecido, outro alguém tão solitário quanto eles aguentando todo dia a mesma música do gás, o mesmo anúncio da pamonha o mesmo chão com as mesmas pedras. E pra mim tudo aquilo era novo. Era um ciclo, que talvez acabasse um dia, talvez não. Mas era novo velho. Por um momento me pensei velha e nova caminhando no meu ciclo vital, as mesmas preocupações transportadas em outros corpos. A criança velha, a velha criança que mudaria de tempos em tempos, durante anos, durante décadas e morreria sem saber o que era, deixaria de pensar nessas pessoas que também morreriam, mais cedo ou mais tarde. Os pensamentos que pensavam essas pessoas morreriam por completo também. Os ciclos que talvez um dia se cruzaram, sobrepuseram-se ou nunca se chocaram, seriam os ciclos de outras pessoas em outras situações, mas sempre os mesmo. E o caminhão de gás anunciou na esquina. 

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Indefinido

Preciso de uma palavra pra começar. Qualquer coisa que me faça continuar depois. Uma sílaba, um ponto. E nada vem... veio isso. E comecei.

Um cordão vermelho dentro de uma caneca enorme com a asa quebrada. Um cadarço, desconfio. Junto tem mais um monte de quinquilharias, papel, palito de sorvete, lixa de unha, canetinha e se abusar, outros lixos sentimentais de alguém que os deixou ali. E continuou.
Que o dia está cinza e um pouco frio e a garganta fica meio roçando. Esqueci o cordão vermelho. E tentei pensar em outra coisa, só pra escrever mesmo. Catraca!

Agora eu precisava de uma palavra pra terminar, por que não veio o resto, nem sei se viria. Decidi terminar por aqui mesmo, sem nada concluído, sem saber o que seria se eu continuasse a dizer o que não sabia. Quem sabe depois, outra hora, quando eu começar de novo.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Com Sabor de Fruta Mordida

Perfume de frutas secas. Meu coração seco cheirando saudade. Pela casa toda, pelo vitrô, exala esse cheiro de um tempo que não foi. As frutas ainda estão ali, podres. Não tive coragem, nem ânimo de tirá-las. Queria muito tê-las jogado fora no primeiro minuto que fechei os olhos e caí no chão, chorando, uma maçã espatifada sem semente.
Mas não é ódio. Não é nada, aliás. É comigo. Desde que você se foi, se é que foi mesmo, voltei meus olhos para mim mesma, mais superficialmente, mais to-nem-aí-com-a-vida. Deixei de perceber um pouco o canto dos pássaros, as nuvens no céu, os olhos enluarados que me comiam, os ninhos de mafagafos, se é também que já vi algum. Deito e rolo. Acontece que hoje, ao cair da tarde, ao levantar da noite, solidão em casa ouvindo o silêncio da rua e às vezes um latido de cachorro, me dei conta mesmo que você foi embora. Me dei conta de que as fotos que vejo suas não me têm mais ao seu lado. Que não sou mais o preto que completa seu branco, nem o pio do passarinho da manhã.
Metodicamente, todo dia, quando acordo, olho a hora no celular, coço a barriga e corro pro banheiro, indo na ponta dos pés. Sempre tive mania de, quando descalça, andar com uma parte do pé, mesmo que estivesse sujo, prestei atenção nisso algum tempo atrás. Olho a luz do sol entrando pelo vitrô do banheiro enquanto faço xixi balançando os pézinhos mornos ainda do cobertor. Pensamento vazio de manhã. Depois lavo o rosto malemá, porque esqueço de prender o cabelo e se eu abaixar, ele molha. Aí vou pra cozinha, olho a fruteira, a mesma coisa de sempre - no fundo também tenho preguiça de tirá-las. Na gaveta da geladeira tem mais, mas frescas. Corto alguma e ponho no meu cereal. Sento no sofá e pareço não ser nada, nem ninguém. Não tenho memória e a única coisa que ficou foi você nesse cheiro insuportável de fruta passada, quase virando sopa no vaso, quase fazendo parte de mim. Não consigo mais comer o cereal. Olho o céu e choro, choro, menino, de soluçar. Se eu morresse ninguém sentiria falta, nem sentiriam meu cheiro de podridão, mas me mandariam uma carta para jogar fora estas frutas.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Pés

Parei no metro para esperá-la. Fiquei meia hora na espera. Muitas pessoas passavam, entravam e saíam. Li um livro, olhei, reli, olhei as pessoas novamente. Olhava o relógio... condensado. Às vezes acho que parei na vida. Tanta gente passando por mim, quantas pegadas marcando o chão sujo, meus olhos, meu pé estático. Às vezes acho que espero da vida. Respirei fundo. Tudo em volta flui muito bem enquanto fico parada observando os outros, observando alguma história que não é minha, alguém que me pergunta o preço da passagem do ônibus, outro que pergunta onde fica tal rua " estamos nela, é só subir...". Sede, muita sede.
Sensação absurda de ficar enquanto os outros vão. Um pressentimento que, enfadonhamente, me faz calcar as unhas no chão atoa, pura bobagem. E que não sei como mudar isso, como fluir, como passar a catraca sem pular, sem ir só de escada rolante. Ironicamente estava terminando de ler On The Road... chegaram no México. Eles vão, passam, uma formiga que morde e faz ir, apenas ir.
Já cheguei a achar que sou eu quem passo, mas o relógio marca sempre a mesma hora.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Vapor Maravilha

Algo que soe, como sempre, com a diluição instantânea do tempo bom, do tempo-maravilha. Esse sensação de dilatação passando voando no seu nariz, outro dia, já é outra hora, vamos acordando. O vapor do banho cheirando dove, refrescante, box esfumaçado. Passa  mão no espelho pra desembaçar, faz um coração, depois rabisca alguma coisa com o dedo indicador e vê seus olhos. Faz careta. Ah, essa coisa boba que passa rápido.

Escrevi seu nome, depois fiz um leão, depois uma dança sensual no banheiro, sozinha e encrenqueira.
Citando as coisas do tempo maravilha estão outras coisas, como te encontrar e fazer Amor com você. Lou-ca-mente. De dia, de noite, de tarde, de manhã, quando acorda, pulsando pulsando pulsando. O banho. Comer batata frita e tomar suco de morango com leite, batido no liquidificador. Um beijo por trás. Sinto um arrepio. Seu cabelo é lindo e que sorriso! que corpo! desliza na minha mão. Me puxa, me joga no quarto de janela semi fechada de cortina remendada. E louca-mente mente que tem que ir embora rápido, porque o tempo urge, uiva, cadelo. Cadelão. Vê-se pela luz da janela que vai mudando de tonalidade, de cores, do claro pro laranja, pra noite e chegou a hora. Mais 5 minutos. Te agarro rápido e evapora, exala cheiro de quem-acabou-de-ter-um-espasmo. Maravilha. Sorrio safada, cretina. Que isso, sou um anjo. Que isso, tempo maravilha, com mil bocas sou engolida e me perco nos braços quentes, tempo maravilha, dá um tempo e vê se pára,que não tô afim de olhar no relógio pra ver seus ponteiros diários. Não e não. Te jogo no lixo. Taco fogo. Mas aí repenso, me jogo debaixo da cama pegando um trident que caiu do bolso - trident de melancia - repuxo o cabelo no alto, baforo o espelho e escrevo besteira. Falo besteira. Penso besteira. Tudo colorido, às vezes preto e branco, às vezes só branco, vermelho e branco, a cor que você quiser, meu benzinho.
Do vapor no nosso corpo. Amanhã tem mais. Mas passa que é um avião de rápido. Maldito. Tempo maravilha, dilatando, remoendo meu coração, meu corpo, meu prazer.

Se Teresa me falasse...

(ouvir com Chopin - Valsa n° 1 )


Ah! Se Teresa me falasse que eu não devo tomar sereno...
Correria de medo, peito cheio, os olhos grandes
e ficaria em casa, deitada e coberta.
Se Teresa me falasse que o mundo é uma mão que nos agarra
eu teria tanto medo e me encolheria no colo dela, enquanto a sentiria acariciar meus cabelos.
Se Teresa um dia me dissesse que o Amor dela é um mar infinito de peixinhos coloridos, eu pularia de alegria, viraria cambalhota, assobiava canções lindas e imitaria passarinhos, sentiria-me voar por entre as árvores e a abraçaria bem forte.
Se Teresa soubesse o quanto eu gosto dela, e eu já devo mesmo ter falado, ela sentaria numa rede nesses dias preguiçosos de verão, e passaria a me contar histórias de seus tempos remotos. Mas ela já faz isso... será então que ela sabe que eu gosto mesmo dela? Que eu gosto da sua comida bem temperada, da carne com mandioca, do feijão cozido na hora e do arroz doce que só ela sabe fazer... e se ela me falasse que não sabe fazer doce de abóbora eu faria um bico desse tamanho, porque eu não acreditaria nisso, é claro que é mentira, porque ela sorriria por não conseguir mentir tão cabeludamente assim. Ah! Teresa! Você é um anjo!
Se Teresa me falasse a verdade de tudo, se ela me falasse o quanto o céu é lindo e o quanto eu sou tão especial, eu acreditaria. Mesmo ela falando que sou alguém muito chata e teimosa e marota, com um ar de brincadeira, eu também acreditaria, porque é verdade. Ela fala doce, sem querer machucar, ela fala sério, ela dança, ela mima. Acredito sim.
Se Teresa me falasse tudo... e ela fala, eu acredito. Nos pássaros voando, nas histórias infantis, no mundo lindo lá fora, na bondade das pessoas, tudo que ela me conta. Que bondade. Me faz um cafuné, eu te faço um café com canela e sentamos aqui conversar.
Ah! Teresinha! Você é um Anjo.

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

De Repente Ilusão

Que coisa linda
Que coisa louca
E tudo
e tanto
pra quê?

O que foi
e não foi
..
e será algum dia?

Será?
O que faz o tempo enquanto me espera?
O que faz o destino enquanto não arma contra mim?
E as árvores, o que fazem sem florescer?

Não sei.
Sem contactos, por favor.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Parado o Tempo

O que é o tempo senão nós mesmos passando? Um fio entre a vida de um e a morte do outro, o tempo que nunca morre, o tempo que só é ele porque é assim que tem que ser. Não fala. Não cheira. Não dirige caminhões barulhentos. O tempo não existe. Sou eu, infame vida, diluída num espaço. E quando eu morrer? Cantarão louvores? Morrerei?
Deixarei de existir e o mundo será sempre a mesma coisa. O tempo correrá. O tempo não fará nada. Só passaremos. Ou passarinho.
As coisas se repetem num paralelismo. Mãos e braços fazem sempre o mesmo movimento e eu te apertei contra o meu corpo. Não foi em vão.
Repetem, as coisas se repetem, mas não são as mesmas. Criam, recriam. Tudo se transforma, ó Lavoisier. A Flor renasce do adubo. O germe que faz a mão. O leite em pó vira leite mesmo assim. Mas o Tempo, o tempo não renasce. Escorrega numa linha tênue do universo que sequer existiu. Há nessa coisa imensa um limite? E o que hei de me preocupar com minha tosse? Ou se você vai rezar ajoelhado na igreja, ou se cagaram na calçada de casa? O tempo não sabe.
O tempo não sabe mas ele comete crimes. Você que não sabe, mas é um ponto mínimo num ponto mínimo de vida. De vida. Que quer dizer morte? Se vivemos é porque vamos morrer. Se morro é porque vivi. Não necessariamente na ordem natural. Ordem invertida. E se vivemos na morte? Que tempo é esse?
Agora, na madrugada, ouço um caminhão. Logo ele irá embora, pode ser que demore. Em casa as pessoas dormem. Morro de sono, mas insisto. Uma vaga ideia existencial. E crianças que nascem mortas?
Pra que tantas perguntas, meu Deus... se sabemos que não temos resposta. E se tivéssemos, que importaria uma a mais outra a menos. Os destinos sempre serão os mesmos. Todo mundo passou pelo portão da vida, agora caminhamos com os pés soltos em direcção a árvore genealógica. Gerações e gerações. Ramos de folhas, frutos, ó!
Mas não há mais tempo. O caminhão continua lá com seus barulhos nocturnos. Tenho preguiça de olhá-lo. Devo dormir logo, o sono é pesado, me fecha os olhos. É Tempo de dormir.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Poema Desconhecido

tem hora que bate uma coisa no peito
não sei se é saudade
não sei se sou eu
ou esse frio cortante
mas bate
e bate forte
feito vento de tarde na porta suspensa

tem hora que bate uma coisa no peito
se é solidão, eu não sei
veia estourando
imagens do passado
um presente perdido
ah! se eu soubesse
tem hora que não sei

engolindo qualquer coisa
arrumando o cabelo
relendo uma nota
esquecida no ar
de aguar os olhos
fazer lembrar
lembrança que não existe
mas está lá
balançando na gangorra
aqui, no peito
aqui, nos olhos
no sorriso
aqui
comigo

tem horas que sei lá.

Quando Vomito Qualquer Coisa

Algum jeito que não tinha. Sei lá, era meio estranho. Não tinha jeito nenhum, desses meio sem sal nem açúcar. Chocho. Chuchu. Sem graça. Insosso. Era pouco. Mas era, vou ter de admitir, de uma inteligência falha, inacessível. Por ser inacessível era incompreensível. Escrevia no final do caderno as frases soltas que vinham na cabeça " o prendedor de roupa prendeu meu nariz/ não senti/ desamei/ se é que eu amava". Assustou. Ele amou algum dia e amor não era pro bico dele. Quem me dera.... Alguns desenhos desalmados também pelo caderno.
Ah! Eu não sabia mais o que escrever. Agora sou eu quem digo. Que menino é esse que só o sei por essas linhas que escrevi? Alguém que conheço? Não consigo inventar. Não consigo escrever essa fome diária de palavras. Sinto uma vontade imensa de desembuchar tudo aqui, cuspir, vomitar, berrar, mas há algum tempo não sai absolutamente nada que preste. Nem rabiscos no final do caderno. Quiçá uma ideia vaga aqui ou ali, uma aula de literatura que me inspira, mas.... mas na hora do vamos ver fico paralisada como um animal empalhado. Empanado? Porque não?
Algo dentro de mim borbulha querendo sair, não sei o que é. Se soubesse de imediato já havia dito. Escute. Um tiro lá fora. Todo mundo dorme. O sono quase me fecha os olhos, mas resisto. Quero escrever. Quero tirar fora essa macumba nojenta. Quero escrever, porra. Não é possível. Antes eu engolia milhares de coisinhas e cuspia em formas bonictas-horrendas de meia dúzia de palavras. Minha barriga ronca. Meia dúzia de palavras e eu me sentia nova em folha. Como depois de passar uma análise, um banho de sal.
Que menino é esse, meu deus? meu bom deus. me guarde. rezo. acredito. as coisas parecem sumir de mim, evaporam, arredam o pé pra longe, se é que um dia estiveram perto. achei, de repente, que os olhos alheios vissem infamias minhas. porque quis? porque quis ser infame, eu, aqui, falando nada com nada. Nem vinho, nem cerveja, alguns olhares, mas aquela poesia que me comia por dentro, aquela dor clichê de sentir o mundo no estômago parece ter sumido de mim. E falo isso com saudade da dor mais sincera possível. Também é um erro pensar que para vomitar essas coisas infames é preciso estar com a dor do mundo. Mentira. Mas eu, eu que dramática como sempre fui, não posso negar. E a felicidade? E essa ânsia toda pelo cinza, preto&branco, mono cromático, pontos, no mundo colorido?
Ainda estou com sono e todos dormem. Digo: todas. Faz frio, como sempre, nesses últimos tempos e isso me agrada. Queria gritar pro mundo, me perturbar. Mas estou perturbada por não estar perturbada. Não sei como faço. Deveria dormir talvez. Um gole de água gelada cortando a goela.
O menino rabiscou o caderno de novo. Um dia, talvez, tenha amado. Mas não sei quem ele é. Ele, muito menos. Não nos conhecemos. Sofremos do mesmo mal.

domingo, 15 de agosto de 2010

Recorte

Do ponto de ônibus vejo as pessoas dançando por trás da janela.  Rodopiam seus corpos, erguem os braços leves, o cabelo de alguma moça sobrevoa o ar frio que entra pelas frestas. Avisto uma moça de verde. Ela é a única que me chama atenção. Os outros são espíritos brancos pagando alguma promessa de corpo diluído. Mas ela dança bonicto e eu não vejo o seu rosto, que ela esconde do lado do rosto do rapaz que não é o lado que eu vejo. Eles dançam e eu a sinto sorrir com o corpo, com o movimento alegre, com o verde. Os outros não têm vida. Continuo não vendo seu rosto. Apenas seu cabelo e seus braços e suas costas. Queria dançar com ela.
Ela entrou por aquela porta ali, do outro lado da rua. O salão de dança é a parte de cima de um sobrado meio cinza, como todos os outros. Tem alguma coisa de vermelho nele e o verde que vem dela. O resto é branco. Os ônibus passam toda hora e nenhum é o qual eu pego. Pessoas entram e saem, brotam, vão embora, e eu fico. Olhando o olho mágico do tempo e ele só me engana. Volto novamente meus olhos para a parte de cima. Alguma coisa me diz que eu já vi isso antes, agora, aqui. Quem sabe... Alguém ainda do mesmo ponto de ônibus comenta sobre os dançarinos. É uma escola de dança, eu acho. Só os vejos da cintura pra cima. Dançam bonicto. A moça de verde sumiu. Espíritos rodopiam.
Pessoas em volta se agitam. O ônibus chegou.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Das situações

Mês de agosto passa num gole gelado doendo a garganta. Mas qualquer mês passa. Vejo pessoas brotando do nada, vejo meninos dormindo na rua. A juventude triste com seus cabelos engraçados nos ônibus da meia noite, cigarro, cerveja, 13 anos, outros mesmos tempos que mudam e voltam. Os jovens desanimados com a vida, tentando resgatar uma superfície densa em coisas inúteis e caíram. Levam agora o ombro pesado, os olhos pretos de noite, porque o dia não faz sentido, a noite ajuda quem o sol despreza. E não fazia sentido nada antes, nem agora, nem depois do mês de agosto. O tempo era frio e calor em dias alternados. Ou era frio demais ou um calor insuportável e a gente também oscilava com essa brincadeira da Natureza. Se um dia virava o rosto pra esse lado, no outro estava mergulhado num balde com água fria, congelada dos dias anteriores.
... dia-a-dia comendo o mesmo biscoito de polvinho, dia-a-dia chupando esse osso amargo de galinha quase viva. Limpando os dentes com a unha e cuspindo, quase na face alheia, os restos mortais de penas e cacarejos. Porque sabia que depois não poderia comer outra asa ou grudar biscoito no dente. Mas era inútil como furar a barriga por ter comido prego. E o sol se punha, pensava. E não era inútil.
E aquilo tudo que ele sentia era mentira. Disenteria. Cacarejava. Era dor que nem doía. Era Amor que não vinha. Era a mesma enfadonha sensação de que o dia seria outro, como todos, ou igual, como todos também. E era Amor aquilo que doía. Era Vida aquilo que vivia.

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Yakult

Mais pra pensar do que pra comer algo, ele abriu a geladeira, e uma brisa leve encostou no seu rosto quente. Dia quente. Pra pensar: Quem será que está abrindo a geladeira exactamente nesse segundo?
Coisas vagas. Sozinho em casa. O dia está realmente muito quente e era inverno.
Tomou banho tão pensativo. Lavou o cabelo, deixou a espuma entrar um pouco nos olhos, sem querer, e ardeu, e a espuma caiu pelo corpo, abriu a boca e bebeu um pouco de água, depois cuspiu pra cima. Sede. Dia quente. Fazia as coisas como sempre fez. Talvez algum dia não fizesse mais aquilo como sempre costumou fazer. Talvez alguém o impedisse, talvez apenas morresse sem tentar de outros modos. Talvez não quisesse tentar de outros modos. Deveria? Sabonete no sovaco enrolado de pêlos.
Espinhudo. Ainda pensou porque não haveria alguém ali, tomando banho com ele, cuspindo água na sua cara, água quente com saliva. E os dois ririam. Ele e ela. Alguém qualquer, qualquer uma, a vizinha, do bar, a balconista da loja, a patroa do irmão. E ela seria como? Coisa boba de se pensar. Não haveria porque não haveria ninguém ali, oras. Será que faço a barba? Gosto dela assim, fico com cara de sério, sério nerd, sério sozinho, sério-abro-a-geladeira-pra-pensar.
O sol entra pela janela do quarto que fica exactamente na frente do banheiro. Luz da tarde, alaranjada e reflete no box cinza. Pensou em tirar uma photo da sua silhueta atrás do box. Mas ficou com preguiça de pegar a camera e além do mais, ia molhar todo o chão, que preguiça. Ai, que preguiça. Terminou o banho.
Pelado foi até a geladeira, abriu, coçou a cabeça e pegou um yakult, o último dos últimos. Porque não? E mordeu com toda força a bundinha do yakult, um furinho, tomar pela bundinha, ele aprendeu isso com ela, que não era alguém qualquer da rua, nem do bar, mas ela que lhe ensinou tomar yakult pela bundinha.
Lá vai eu de novo em crises existenciais de: quem sou eu?

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Mais do que Isso

O dia todo de pernas pro ar, fazendo poções culinárias na cozinha com sorvete de creme e suco de laranja, porcarias. Lá fora o céu azul, um sol de bronzear calmamente a pele que é soprada pelo vento morno, meio gelado, meio ventania que me leva pra qualquer lugar.
À tardezinha, quando o céu começa a ganhar tons alaranjados, quando o vento sopra um pouquinho mais forte e o silêncio na rua é quebrado por latidos lá no fundo, por marteladas e passarinhos... acendo um cigarro que escondi atrás dos meus livros na estante, guardo o isqueiro no bolso pra fazer pose, ah! o céu, ah, essa terra que deus me deu, essa vida besta, meu deus. Lentamente fui deitando no chão sujo de casa, encostei a cabeça no degrau, eu de roupa folgada, quase uma mendiga, de pijama, meias laranja, chinelo fru-fru que ganhei da minha mãe, relaxo, e ouço a música entrando no meu corpo junto com a fumaça, eu sei, não me faz bem, mas quem se importa? se isso de ver o céu me faz tão bem, sou quase uma nuvem me dissolvendo com o vento. Essa cena linda do meu filme imaginário, quotidiano, realista surreal, que construo com minha própria imaginação de menina-que-fuma-por-graça. ( na sacada de algum apartamento, num dia qualquer, alguém diz que fuma porque acha bonicto...).
Simplesmente, às vezes, não há o que acharmos. Há o que há. E havia eu e o céu, ínfima como uma formiga, eu o admirava de barriga pra cima, o sorriso extasiado de canto. E eu não queria nada mais do mundo, só estar ali, eu com o céu na nossa partilha. Partilha.
E apaguei o cigarro e a música acabou. Mas eu ainda era toda céu, toda nuvem. Eu era muito mais do isso.

 Para ler com More Than This - Norah Jones

terça-feira, 20 de julho de 2010

Letra Antiga

Olha, olha a hora
vou embora
colabora e não chora
porque agora
tá na hora da gente
se separar.

Vai! Não quero mais
minha paz
meu rapaz, foi fugaz
o que o amor traz
tanto faz
porque agora ele morreu.

quinta-feira, 15 de julho de 2010

Dois Mundos

Ela me beslica me atiça
me cortiça
Contando nos dedos
os dias pra ver meu cabelo molhado
meu tipo de papo
o dia do plano
Contando nos brancos
tijolos de louça da vida
quantos tijolos de barro
foram quebrados
Ela me apanha
me cutuca
me ignora
Contando nos laços
os abraços que tivemos
e ainda põe em cima
do criado
que não é mudo
uma foto
de quando tinhamos dois
dois mundos.

Adeus, Fusca Azul

Uma homenagem surreal ao Fusca Azul Calcinha
que me acompanhou
em momentos marotos
e malandros
de lembranças e apego sentimental.
Sentirei muita saudade, até de te judiar andando
com o freio de mão puxado
e encostar a roda na guia
e xingar os outros motoristas que andam devagar na minha frente.
Que seu cheiro de gasolina continue
incendiando meu coração fraco.

Com carinho,
Cássia, vulgo Francisquinha.

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Saia Rodada

Vou rir até o sol explodir na minha boca.
Vou chorar até a chuva despencar no meu corpo.
Vou dormir até a noite dar lugar ao meu banho
e correr até o dia nascer
em direção do mais puro
perfume da folha verde
em movimento
em movimento
em movimento
a natureza
em movimento.
Passou pelo sorriso
toda a alegria da vida.

Lente

Mas para eu escrever tudo é como se me fugissem as palavras.
Às vezes ninguém me olha. Não noto muitas pessoas, outras me chamam muito a atenção. Nos pontos de ônibus os olhares se cruzam. As pessoas ameaçam e se sentem ameaçadas, outras simplesmente não estão lá. O contacto diário com outros olhares, outros corpo, um fio de cabelo, um lenço, como o ar que respiramos, e nos obriga a respirar.
É preciso ver - frase de muro.
Mas ver o que? Ver-se?
Às vezes passo o dia todo em casa, comigo mesma. Às vezes saio por aí e vejo todo mundo, comigo mesma. Nos ônibus que entro, há sempre alguém que senta ao seu lado quando você não quer que sente. E o ônibus sempre passa quando você não precisa. Há sempre uma criança chorando no colo da mãe ou um idoso ocupando o banco reservado. Ou uma jovem ocupando o banco reservado que não sai quando chega alguém " nessas condições".  E uma mulher cheia de sacolas saindo pela frente. Alguém que perde a carteira, alguém chamado Henrique, alguma chama Neusa, eu que me chamo tantas. Há aqueles que te olham de fora quando você está dentro. E os que te olham de dentro quando você está fora. Incasavelmente, todo dia, toda hora, uns olhos perdidos, no mais fundo da noite, no raiar do dia, na chuva da estrada, na banca, no ponto, na linha cruzada, no fogo morto.
Um mendigo olhará com olhos cansados, como os meus nesses dias, e te implorará, sem dizer uma palavra, o quanto carregar aquele trapo nas costas, dói tanto. Benditos sejam os presos pela liberdade.
Pela liberdade. É uma coisa, que depois de pensar muito, cheguei a conclusão ( inútil, como todas as outras) de que não existe. A liberdade. Não existe. Estaremos enfadonhamente sempre presos a alguma coisa, mínima que seja. E que exista., de facto a liberdade, estaremos presos a ela. E isso é algo que não podemos controlar, como o fio que cresce na cabeça ou a bala perdida ao meio-dia.
Olhe olhe olhe olhe pra mim.
Depois de um banho vou dormir com os olhos pesados. Depois disso não sei mais.

Isqueiro Azul Diluído

Num tempo surreal do próprio tempo, nos perdemos e nos ganhamos nessa corrida, não armamentista, mas vital, mas passageira, mas qualquer coisa que evapore como o perfume do meu pescoço em narizes alheios que passam, silhuetas, e a natureza do vento tirando camada por camada da minha superfície.

Ela estava alterada pela cerveja que compramos de litro num bar qualquer ali na Augusta. Não gosto de cerveja, já deveria saber, mas tomei alguns goles. Enquanto eu bebia um, ela já estava no segundo, tão rápido ela engolia cada gota. Começou a me beijar enlouquecidamente que não parava mais. - Vai ficar ai sentada? - me perguntou, desafiando. Lerda como sou, pensei por 3 segundos e me toquei que ela queria dançar. - Ah, quer dançar? Vamos. Levantei e a puxei pela mão que deslizou num segundo para sua cintura. Seus braços para o alto, ela dançava colada em mim, meio bêbada, mais uma gota para a devassidão do seu corpo. Me beijava dançando e eu reluzindo, quase parada, sem acompanhar seu ritmo sensual. Que quenturão, essa meia luz quase escura, um porão quase abafado, aquela gente que eu nunca vi na vida, uns mocinhos sentados ali no sofá, outros na cadeira, mas ninguém nos olhava, era eu e ela dançando no meio, sem se importar com nada. Deslizando os corpos no chão deslizando na música, qualquer coisa alternativa que eu conhecia, mas era um voz feminina num ritmo dançante e isso já bastava para acender nosso fogo já aceso. Me colando num pilar qualquer, me beijava me beijava me beijava e eu a apertava contra meu corpo, não não não, não acreditava, que coisa, é essa, menina? O que que é isso? Nunca te vi assim.
Qualquer canto que encontrávamos ela me colava na parede, me beijava, e às vezes eu tentava sair para pegarum cigarro e ela me falava, sedenta ainda - Porque você não me põe na parede? - e eu ria, fazendo um charme, de " espera mais um pouco, porque não vamos ali com os outros? " e a pegava pela mão, como meninas comportadas. Vai, vamos fazer igual nos filmes, que você pega um cigarro e eu tiro do meu paletó o isqueiro para acende-lo, sem você pedir, mas porque eu sou muito rápida -  mas eu não tinha paletó, só um blazer sem bolso - fingi que tirei de dentro e ela acendeu o cigarro, soltou a fumaça, depois me deu. Guardei o isqueiro no meu bolso da calça jeans. Não estava frio, mas o vento leve arrepiava seu corpo quente. E me puxou de novo pra porta fechada de um bar e quase me queimou com o cigarro.
Naquele dia, e era um dia qualquer desses dias qualquer numa tarde tarde qualquer com céu azul e quente em pleno inverno, que eu nunca entendi, afinal, e a gente andou muito o dia todo, pra nos recompensarmos com um banho delicioso em qualquer banheiro pequeno desses apartamentos em algum lugar de São Paulo. Ah, São Paulo. O dia estava lindo. E passaria voando como qualquer outro. Passaria voando como passa o tempo quando queremos que ele passe lento. E passa lento quando queremos que passe rápido.
E as cenas se misturavam também nesse tempo diluído, entre uma e outra pessoa, que eu já não sabia mais quem era. Entre um dia e outro. Voando, passou voando. Quando dei por mim, estava dormindo em pé no ônibus de volta casa, de manhãzinha, as pessoas indo trabalhar e eu voltando da rua, o pé doendo por causa desse maldito All Star que pegou no meu dedo a noite toda, sem contar a longa, longuissima caminhada na madrugada, pela paulista inteira, falando sobre porcaria nenhuma e hotéis abertos com quartos baratos e bordéis pela América Latina ou bêbados de carro com som alto que, ao invés de dormirem, ficam zanzando pela cidade em busca de uma gatinha fácil.  Saldo: zero. Mas eu faturaria muitas e nem precisaria de um carro com som alto, seus merda. Mas eu não. Dissemos, alguém disse, eu disse, não sei mais quem disse. Mas agora era eu e ele só naquela imensidão de avenida que não acaba mais, morrendo de fome, os dois. E é certo que fomos quase o caminho todo falando de comida, e nada naquela joça estava aberto. - Queria uma coisa bem gordurosa agora. Hm, uma pizzza de calabresa - adoro calabresa - uma coxinha, feijoada - que tal? - feijoada. Dissertamos sobre a feijoada: uma feijoada bem suculenta, com uma farofinha assim, com laranja, uma couve bem refogada - pára, ai, meu estômago - puta que pariu, que delícia. - um arroz bem soltinho. Delirávamos.  E isso me fazia esquecer um pouco da insuportável dor no meu pé. Comida comida comida. - Bem, pelo menos já estamos quase chegando, já passamos o Masp. Nossa, como tem gente por aqui, não estava assim quando fomos.
Lá estavamos nós, a perna latejando de tanto andar, água água água e uma coxinha do bar da frente, per favore. Não quer cerveja. Cuspi água na cara de alguém. Não lembro exactamente que momento foi isso, já estava tudo evaporando, o tempo, as pessoas, os factos. Mas evaporando não de droga ou qualquer coisa química que eu tenha injetado, ou alguém, ou qualquer coisa que soe como psíquico, mas o tempo se evaporava num piscar de olhos. Muitos risos malígnos de minha parte. E ela veio com metade da garrafa querendo me molhar, não antes de eu, num movimento ágil, dar um tapa por baixo e fazer voar o copo com cerveja nela. Mais mais mais mais risos.  E ela puta vida. Tudo bem, segundos depois ela estaria fazendo massagem no meu pé e me jogando no sofá pra fazer massagem nas minhas costas. Mas você não sabe a marotisse que é remoer isso tudo deitada na cama, tentando relembrar os momentos, bocado por bocado. Aqui e ali. Alguém. Nunca fui senão tão babaca com uma roupa qualquer, meio amassada e usada do outro dia. Ou largada pela vida sem me importar se era água ou cerveja que jogavam em mim. A vida era outra coisa muito mais que isso. A vida é muito menos do que pensamos.
E de repente me vi debaixo do chuveiro. Mais de repente ainda acordando de tardezinha, com o sol já se pondo. E era sonho? Eu que queria lembrar de tudo, mas os dias se diluem no tempo e não sabemos com quantos anos estávamos ontem. Amanhã talvez eu esqueça, como passa, e que puta, agora, lembra do seu homem da noite? É sempre outro, é sempre ela. E fui embora.

domingo, 4 de julho de 2010

Ó ou

Cante comigo, mocinho. Você vai crescer e vão falar pra você não correr na rua e olhar para os dois lados para atravessar.
Já pensei em como seria correr pela rua, tropeçar e um carro me atropelar, sei lá, pensei.
Mas veja como é lindo, veja bem, a relação humana. E isso soa meio irônico, até pode ser, mas acho que exactamente nesse momento não estou usando a ironia como um mecanismo de defesa, mas achei que aquilo de lá é de uma beleza tremenda que eu sorri de orelha a orelha. Cante comigo em inglês, enrolando, é claro.
E veja como o destino sim é ironico, porque poderia ser eu naquela circunstância farfalhando os galhos do outono bem no meu ouvido com gotas de vento. Poderia sim. Mas... mas, eu achei, de coração mesmo, que há uma beleza que eu não achei que veria. É a beleza do tempo e da espera, de uma certa maneira. E é a beleza de aceitar que estamos no verão quando queremos o inverno e que o horóscopo sempre vai achar que comanda sua vida, quando de uma hora pra outra comemos maria mole.
Abri a geladeira e tomei iogurte de frutas vermelhas, mas era um sabor de leite muito fino, que eu degustava imaginando que eu nunca havia degustado um sabor gostoso de iogurte de frutas vermelhas. Tinha ainda na porta da geladeira: Coca-Cola Diet, Vinho branco, Vinho Tinto de Mesa, alguns molhos, cerveja preta, chantilly, e afins. Hm, vou assaltar a geladeira à noite, comer uvas verdes com chantilly e tomar vinho branco, ouvindo um jazz ou um blues. Porque não? Afinal, sempre digo, a vida é um prazer. E o prazer só é possível depois da dor. É como comer uma comida muito ruim e depois comer um manjar maravilhoso. Veja como meus prazeres tem sido, além de olhar pela janela fumando um cigarro preto, comer feito uma morta de fome. Mas a questão, no fim é, eu sempre gostei , mas agora meu paladar está aguçadissimo e já sei distinguir os sabores de vinhos. Os baratos que bebiamos na praça eram bons, mas naquela época. Quando a menina entrou em casa e com um vinho Cantina da Serra na mão me disse:" Comprei pra fazer espanhola, e não pode ser vinho chapinha, tem que ser esses daqui". U-au, que malandragem, pensei. Adoro espanhola. Andalusas? Como as raparigas andalusas costumavam fazer.
E os burrinhos meio dormindo escorregando pelas ladeiras sempre imaginei que fosse uma cena linda. Agora sim: E as moças espanholas de chale rindo rindo de ronda olhando para o amante dela pelas frestas das venezianas das casas amarelas e dos jasmins de Gibraltar. Mais lindo ainda: Quando eu menina era como uma flor da montanha.
Trechos de Ulisses, James Joyce, no solilóquio de Molly Bloom. Derreto-me recitando o bocado deveras grande desse solilóquio.

"Eu nunca mais vou respirar se você não me notar"

Équixagerado.

Mas voltando ao assunto, ó senhores condecorados, eu gostaria muito, nessa madrugada, poder sentar nesse sofá branco e olhar através do vidro a silhueta das árvores grandes que embelezam a paisagem, sob a luz da lua numa oitava maravilha inacreditavel. Danço sozinha, sempre. Nunca enjoo. Depois fico mais ou menos embriagada, porque você já deveria saber que adoro vinho branco, mas posso beber dos dois. Prefiro água às vezes, na maioria. E vou pensar na vida como bem me ponho a fazer. Às vezes concluo alguma coisa mínima. Mas concluir alguma coisa é excluir outras. Que seja.
Acabei de ler num perfil: Completamente apaixonada pela vida.
Alguém me explique isso. Não há, nesse mundo humanamente impossível, amar completamente a vida, assim como não há como amar completamente a si mesmo, no maior narcisismo que haja, ó meu caro.
Ela caminha até a cama, vê a imagem de Jesus de Cristo europeizado e se sente melhor. Assim como eu acordo, olho o a luz doirada do céu nas folhas verdes e me sinto melhor, assim como outrem acorda e bate o nariz num pózinho branco. E nada disso é condenável. E que diabos estou fazendo?
Dancing in the rain. Ó ou.
Ou não.

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Me dá

Ela tem uma boca que te come só de você olhar pra ela. Ela tem um cabelo que te cobre só de você cogitar em acariciá-lo.
E os olhos são grandes feito boneca de porcelana, mas ela é morena. Morena cor de jambo. Manga rosa. " Eu quero o gosto e o sumo". E se eu te contasse que os beijos são extasiantes, de virar os olhos e se perder nessa sintonia diluída entre tempo-prazer-amor.
E ela tem um calor que exala no mais frio possível da noite e te esquenta como um edredon dormido.
O meu edredon dormido. E a gente fuma sem gostar, pra fazer pose. E a gente vai desconfiadas no ônibus e eu a puxo pelo braço pra gente correr e ela fica me falando pára pára e corre mesmo assim. Depois eu a jogo no chão no meio do parque e roubamos flores do parque e somos vistas. Até perseguidas, se bobear e corremos de medo pra ninguém nos ver com a bolsa cheia de rosas vermelhas-amarelas-rosas.
Mas acontece que eu tô com saudade.
Acontece que a rosa vermelha linda que eu ganhei já murchou. Quero outra.
Pode me dar.
Trate de me dar.

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Hino Matinal

Ali quase perto
vejo sempre as árvores cheias
balançando com o vento
e é lindo tudo isso
porque não há, sequer, nenhum pensamento
que mistifique tudo
porque elas só são árvores e balançam com o vento
como diria Alberto Caeiro
e o sol deixa suas folhas douradas
verde dourado
amarelo ouro
verde das melancias
quase que um hino que eu conheço

Sempre as vejo das minhas janelas
que também não são secretas
e me levam pela manhã
pelo por do sol
pela noite infinita
azul bem escuro e poucas estrelas
desse céu.

Me acalmo e calo
pensando que é isso
tudo o que eu sempre quis.

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Tarde de Junho

é tempo de céu azul
afta na língua
música sensual
unha lixada
cabelo desfeito

passeio no campo
solitário
passeio nos livros
mais ainda
passeio contigo
nas nuvens
tortas dos nossos pensamentos

é tempo de amizade
e boas ações
boas bocas
mãos em mãos
pés sempre juntos

é tempo de frio
e o calor
que me aquece
te aquece também.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Uma parte de mim

Nos dias quietos
como este, meu caro
dá vontade de sair pro desconhecido
e mal sei eu que o desconhecido
está bem debaixo do meu nariz.

sábado, 19 de junho de 2010

Breve Consciência de Três Anos pra Cá.

De quando eu tinha dezessete anos e conversava comigo mesma, no meu único muquifo empoeirado: Este. Meu caro, há quanto tempo não me dirijo a você. Há quanto tempo não me dirijo a mim. Como eu cresci. Como eu mudei. Mudei mesmo? Ou será só esse cabelo despontado? Ou será só essa falha na sobrancelha? O mesmo rosto, os mesmos sorrisos de criança com doce. Ninguém rouba de mim. De repente me vejo mais mulher. Inútil. Me vejo como me vejo. Me incomodei um pouco. Onde está minha inocência? Ainda vejo beleza em tudo. Mas essa selvageria humana. Um coração concreto pesando no meio das pedras urbanas. Uma nova fase, um novo ciclo. O vínculo. Me desato de tantos nós e me ato em outros. Outro acto. Um monólogo. Queria escrever uma musiquinha pro mocinho-mais-lindo-do-mundo me cantar. E ele sabe que é ele, de barbinha e cabelo gostoso de amaciar. De violão e songbook do Chico. Que saudade.
Ai, que saudade de mim que me deu. De quando eu ia sozinha aos pinheiros caminhar e recitar poemas que sei decor até hoje. Eram sempre os mesmos, todos os dias, com o sol se pondo. Os pinheiros sempre de braços abertos para mim, arreganhados. Eu e minha pipa, eu e meus amigos e piquenique. Que fartura. Cantava essa leveza pesada da vida, tão gostosa, tão dócil. Canto outras coisas agora. E me agarro a essa sobra do que os outros não querem, o belo, o inútil, é meu. É tudo meu. Inútil saber que não é.
Descubro minha voz. Canto pra mim mesma com mais afinação. Alto demais. "Mas minhas voz é de criança..." Sim, eu já liguei pra mim mesma só pra ouvir minha voz. Bocuda. Voz de criança mas fala besteira. Sempre falei, oras. Que mal há nisso? Pior se eu matasse passarinho. Pior ainda destruir o ninho.
Sempre descubro novas maneiras de ficar sozinha. E foi isso que sempre me fez ir pra frente. Ou pra trás. Eu nunca sei direito. Também não deve importar muito avançar ou recuar, ou ficar. Contanto que você veja o pôr-do-sol. Que me interessa se um recua enquanto outro pula duas casas? Já joguei banco imobiliário e a vida é mais ou menos desse jeito, só que sem olhar antes o Sorte ou Revés. Reluto muito, mas o mundo acaba por não se moldar a mim. Me diluo. Dissolvo. Nunca. Sou eu mais maleável nesse espinho de roseira. E o bagaço da laranja. Dou duro pra me camuflar.
E de dançar sozinha com aquela cartola lilás ouvindo Morcheeba? Muitos risos e caretas no espelho. Que delícia. Ai, menina, largue mão de ser daninha e vá estudar. E eu estudava. Largue mão de arte e vá tomar banho. E eu tomava. Largue mão, menina, de ser respondona. E eu não respondia. Tudo isso resultou nisto. Artes copistas literárias na parede, essa coisa gostosa introspectiva. Mas até que me acho simpática, não posso negar. Não posso negar, falo o que eu quiser nessa porcaria, é tudo meu. E você pare de ser mimada, e eu não parava e apanhava de vara de marmelo, de cinta, de fio de rádio, de chinelo, de tapa, de tudo. Ai, como doía. Casca de ferida. Ou abria a bocão a chorar ou ficava séria, firme e forte, engolindo o choro. Ruindade. Uma vez fiz meu pai chorar. Já fiz minha mãe chorar. Já me fiz chorar. Até o Lobinho, meu cachorrinho que me morreu atropelado por um infeliz, já devo ter feito chorar. T U D O bobagem. A gente chora porque sente, ué. Porque dói. E quer coisa mais bonicta que doer? Quero. Lá vai: Não, não tem. Tudo dói. Dói de lindo, dói de triste, dói de felicidade, dói de dor mesmo, de barriga ou cabeça, dor de parto, dor por dor, dor-prazer e a dor de amor? Clássico e clichê. Dói de saudade, dói de arder o frio, dói o sol por muito tempo.Dor de morte. E dor de dente? Mas é que a gente reclama de tudo. Que diabos eu estou falando? Eu já tenho 20 anos, não sei nada, mas sei muita coisa, já tive todas essas dores, e quem não teve? A criança da quarta série? Faz-me rir. Na quarta série eu tinha dor de ouvido. Aposto. Nem na piscina eu ia. Na oitava eu já deveria ter dor de pseudo-amor. E dor de barriga? Até hoje.
Hoje tenho vinte anos e me levo no berço eterno da placenta materna. Por opção. É difícil, acredite, é muito difícil crescer. Mas continuo me alargando. Hoje aprendi que: não se pode pisar na grama quando se tem plaquinha. E achei isso absurdo. O que vai doer a grama serem pisadas? Poupem-me.
Hoje tenho vinte anos e parece que nem nasci.
E que tudo acontece aos 17: Escrevi cartas (ridículas) de amor aos dezessete, amei aos 17; sofri demais; me formei aos 17, aos 17 estava coçando a mão pra fazer 18. Aos 18 eu queria voltar aos 15. Mas nem sempre. Meu primeiro namorado foi aos 17. E aos 17 eu comecei a escrever pra mim, pra você, meu muquifo.Viajei sozinha, para o desconhecido, para a desconhecida, aos 17. Aos 17 ainda chorei em posição fetal debaixo do chuveiro, Ah! meus dramas! Aos 17 eu já conhecia Chico Buarque e adorava Bolero de Ravel, Nina Simone e a Nona Sinfonia. Li Lolita aos 17. Reli aos 18. E tentei reler aos 19. Metade. Matava aula aos 17 e ficava na biblioteca. Conheci Delacroix e sua Órfã no Cemitério, acredite, aos 17. Prestei vestibular aos 17 e não passei. Pintei meu quarto, assisti Laranja Mecânica e li todas as peças do Jorge Andrade, aos 17, aquele da Marta e o Relógio. Mijei nas calças, fiz arroz, lavei o quintal, escrevi, asneiras, mas escrevi. E tudo tudo tudo. Mas eu já tinha vida. Sim, havia vida antes do 17. E como havia! Mas aos 17 eu comecei esse vínculo comigo mesma que se une mais e mais. Não é o vínculo teatral, mas é o vínculo visceral. A droga literária. Doses irremediáveis de palavras. Aos 17 eu escrevia sobre a surrealidade absurda e inútil do pensamento sobre um copo com água. Eu acho isso bárbaro. Bárbaro em todos os sentidos possíveis. E me acompanhar até aqui, até essa porta escura que é o amanhã e a penumbra de hoje, é como enfiar uma lanterna na janela de ontem e ver foco por foco cada chaga do meu corpo. Corpo novo. Mas já tão velho, em sentidos grandes. E tudo, abusivamente, não faz, talvez, sentido nenhum. Mas que eu cresço e preencho cada vez mais as páginas da minha tortuosa vida com letras vagas, aleatórias. Mas que nem eu sei o que é, mas é. É uma pétala que fica em cada página. Uma gota de sangue ( em cada poema), e não é de guerra. A engrenagem linfática de tudo o que é torto e não se arruma. Mas o que é reto nessa fajuta trajetória vital?
Aos 20 eu ainda continuo fazendo as mesmas enfadonhas coisas, mas é aí que está, com outros olhares. Talvez, mais sujos ou mais largos? Minha cara, quanta consciência há nisso tudo. Você que teve a vida ao deus-dará, sempre, desde pequena, meninota, quando andava de patinete pelo bairro. E caía e tropeçava, o joelho sangrava. Você, eu, tu, que exerce controle nenhum sobre teus pentelhos. Controle nenhum sobre teu controle de televisão remendado com durex e com pilha fraca. Você, bêbado aos 15, vomitando pelas praças de cidades interioranas, que se acha dono do mundo. E você, mamãe, e você, papai, que cospem a liberdade de seus filhos no ralo com cabelo. É inútil querer traçar um plano para eles. Acredite quando eu digo isso. Ele será coronel se o quiser padeiro, e padeiro se o quiser coronel. Cuida-os com amor e carinho, mas eles são do mundo. Aceite a perda. A conspiração do universo bate sempre à porta. Tive que aceitar que nem minha eu sou, que sou jogada aos quatro cantos do mundo, aos quatro ventos uivantes do pão amanhecido de cada dia.

Poema da Menina na Janela

Mas essa poesia da gente
esse perfume que fica
esse gosto doce do beijo
um abraço apertado
você na minha janela
fumando,
os seios cobertos pelos cabelos
a luz do sol te iluminando
mas você, mas você,
me faz suspirar.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Da janela do meu Muquifo

Do quarto que não é meu
E me apossei por uns dias
Da janela vejo pessoas que passam.
Uma japonesa, um chileno de mochila amarela.
Outra senhora japonesa saindo de casa com seu lhasa-apso.
Ela vai até a esquina e o cachorro pára, faz um cocozinho.
Muito educadamente, ela o pega com uma sacolinha de plástico.
Limpa o bumbum do cachorro com um papel. Sai de cena.
A fumaça do cigarro distorce um pouco.
Agora uma moça passa. Desvio os olhos e vejo novamente a mulher
limpando a bunda do cachorrinho. Voltam à frente da casa dela. Ela fala alguma coisa para o cachorro
( será que ele entende?) e o puxa com toda força. Acho que ele não entendeu não quer ir.
Sai de cena. Um rapaz saindo de casa com a moto.

Não queria lhe dizer, mas
essa janela, esse sol da tarde, essa música
esse cigarro
deixam a gente feliz
que até nem sei.

terça-feira, 15 de junho de 2010

Raiva Repentina

Ai que me arrebento
desses imprevistos
desses limites
dessa vida
errante.

Me mordo.
Te mordo.

Às vezes tenho ódio de tudo.
De vez em quando enlouqueço no banheiro
no chuveiro
enquanto a água cai.

Mas o dia está lindo.
E vou me namorar sozinha.

domingo, 13 de junho de 2010

Trilogia Banderiana

PORQUINHO-DA-ÍNDIA

Quando eu tinha seis anos
Ganhei um porquinho-da-índia.
Que dor no coração me dava
Porque o bichinho só queria estar debaixo do fogão!
Levava ele pra sala
Pra os lugares mais bonitos e limpinhos
Ele não gostava:
Queria era estar debaixo do fogão.
Não fazia caso nenhum de minhas ternurinhas...

- O meu porquinho-da-índia foi a minha primeira namorada.


TERESA

A primeira vez que vi Teresa
Achei que ela tinha pernas estúpidas
Achei também que a cara parecia uma perna

Quando vi Teresa de novo
Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo
( Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)

Da terceira vez que vi Teresa não vi mais nada
Os céus se misturaram com a terra
E o espírito de Deus se voltou a se mover sobre a face das águas.



MADRIGAL TÃO ENGRAÇADINHO

Teresa, você é a coisa mais bonita que eu vi até hoje na minha vida, inclusive o
                                              [ porquinho-da-índia que me deram
                                              [quando eu tinha seis anos.

sábado, 12 de junho de 2010

Carinho

te faço tudo
 carinho
 cafuné
 beijinhos
 café

Breve Apelo

Onde andará Viviane Luqui Acto?
Seus semi-cachos loiros acinzentados
seu sorriso de boca fina
nariz de europeia
alta e sedutora
fria.

Onde andara Viviane?
E seu longo vestido florido
E seu longo pescoço branco
E seu longo silêncio reduzido

Onde andará o teu sorriso?
nas aulas de russo
nos corredores das letras
no dia do impulso
no teu recado partido

Na minha breve vida
encontrei-a
nenhuma resposta
apenas algumas, breves, nada longas
"Seja muito feliz"

E nunca mais apareceu.

sexta-feira, 11 de junho de 2010

Graça Fumaça Vitrola

No começo achei que nunca ouviria nada assim.
Assim, dessas coisas que a gente fala sem querer, que sai do coração mesmo, ou da pele, ou da boca linguaruda. Que sai sem pensar. Apenas sai. E saiu.
Depois do dia maravilhoso. A tarde toda debaixo da coberta esquentado meu gélido corpo. Cheguei à noite, a casa sozinha. Toda minha.
Um maço inteiro de cigarros em cima da mesa. Quanta asneira. Mas eu estava feliz demais para pensar no câncer. Tirei meus sapatos, joguei-os pro alto. Tirei a blusa. Abri a janela do quarto vazio. Tudo meu. O mundo é meu. Olhei pra vitrola, procurei um vinil na caixinha e coloquei um jazz no Glen Miller. Di-vi-no. Peguei um cigarro, acendi na terceira (nunca aprendi a acender cigarro), cambaleei dançante até a janela do quarto vazio. Frio. Luzes pra lá, alguns prédios, o bairro calmo. Fumei como uma poser, uma cena clichê de filme. Ando muito clichê, afinal. E não querer ser clichê por ser clichê também é muito clichê. Pensei. Fumei. Soltava a fumaça como uma actriz, faltou a piteira. O jazz tocando, a noite só minha, o frio só meu, pulmão só meu. Acabou o cigarro e dancei sozinha na sala. Aproveitei meu corpo enquanto ele pode. Piano, saxofone, fechei a cortina, deslizei de meias no chão, rodopiei. Que alegria repentina, que delícia. Num solavanco, fui até o banheiro e fiz xixi e escovei meus dentes, porque me deu uma vontade imensa de escová-los. Sempre escove muito bem atrás dos dentes. Depois me enfiei debaixo do chuveiro quente, lavei minha calcinha e a esqueci em cima do box. Paciência. O disco ainda tocando, corri pro quarto e me enfiei no pijama azul-calcinha-de-vó. Nada mais confortável. No começo achei que não dançaria nada assim. Arrasei na pista.
Depois comi Cheetos de Lua queijo parmesão e me perguntei porque Lua se ele tem formato de bactéria. E lua ou é redonda ou é semi-circular, mas não um bastonete. Vai saber. Tomei suco de maracujá. E ainda estou com fome e com frio. E com sono. Mas estou tão de bem comigo que , não sei. Superstições. Pensei em fumar outro cigarrinho. Por pura graça. Nunca gostei de cigarros, mas no começo achei que não fumaria nada assim. Nada assim sozinha ao som de um jazz.

Voz de Menina Doce

Porque te pergunto se me esperas se eu sei que te espero?

Ao desligar o telefone, com a voz sussurrada, não pra fazer silêncio, mas pra relembrar antes como desligávamos o telefone, eu disse que gosto muito de você. Repeti mil vezes, querendo atravessar a linha e chegar na sua boca. Você não sussurrou para mim, com medo talvez, querendo deixar tudo como está. E tudo está como está: assim ficamos, assim calamos, assim nos gostamos, no silêncio. Mas grito aqui, pra esse mundo oco, numa manhã de sexta-feira, em mais um dia frio em São Paulo, um avião passando ao fundo, grito que a saudade habita e me invade cada vez mais. A saudade. Mas com calma. Estou calma. Grito manso, sem desespero. Doce como a nuvem que te envolve. Doce como o canto do passarinho ali na árvore.
Enquanto você cantava pra mim a música picadinha, porque não lembrava a letra, eu chorava quietinha do outro lado, tentando disfarçar a voz presa. E você ria, ria tão macia e eu chorava, chorava tão macia. A gente cantou nossas músicas, que você já havia esquecido, porque você disse que me bloqueou em você. Enquanto eu ainda aberta, exposta, caindo no asfalto escuro da nossa paixão, avistava uma formiga passando. Pequenas coisas. As mesmas coisas. Rimos tanto, conversamos tanto que eu explodia de alegria a cada minuto. E rolava na cama, colocava os pés pra cima, me olhava no espelho, sorria, sangrava, sorria de novo e mais outras dores agradáveis e mais outros doces amargos. Que melodia essa sua voz. Uma menina desamparada de mim. Nem pelos pais, nem pelos avós, mas de mim. Minha. Possessão absurda essa, quando sabemos que somos sozinhos, mas com você, mas com essa lua, com esse outono, a nossa bolha ainda intacta, essa esperança ainda forte, mas com você eu sou capaz de esperar cair meu cabelo pra te ter, esperar a chuva congelar de repente, te espero no aeroporto, a rodoviária, na sala de estar.

Porque me bloqueia se sabes que te carrego?

Não sei, mas acho que nem ciúme eu sinto de você. Vou te explicar: parece que o sentimento já se consolidou aqui nesse coraçãozinho impuro que aconteça o que aconteça, caia uma bigorna, caia o piano da janela, quebre os vidros da igreja, eu vou continuar sentindo teu cheiro gostoso. E acho isso muito bonicto.
' Eu te quero livre também' igual na música que me cantou, ma-ra-vi-lho-sa com sua voz de moça formada, menina inquieta.

Porque o universo conspira contra nós, se sabe que somos fracos, se sabe que ainda caio?

A flor está aqui. As fotos e cartas. Estou aqui também, como sempre. A mesma e velha Valentina. Comendo chocolate, lendo livros, indo a lugares empoeirados, tendo dias lindos, mesmo quietinha. E você a mesma borboleta azul que eu tenho colada na parede.
E voa. Voa. E fica.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Qualquer Coisa que Soe Como Nada

Dentro desse mundo grande azul, desse quotidiano áspero que tira a cada segundo uma camada da nossa superfície e corroe nosso profundo literário e carnoso, sentei e, intacta, me fiz em lembranças. Inteira. Um outro mundo qualquer, qualquer coisa que soe como nada, qualquer bolha de sabão da infância ou um tesouro perdido no futuro. Porque, enfadonhamente, queira ou não queira, a minha vida vai ser um poço profundo de lembranças, um abismo inigualável de perdas e danos e quedas de braço, perdas de membros, um olho. E no outro ainda há ainda a retina inteira, visualizando com uma só visão todo a dor bela do mundo. Aspiramos, como um aspirador inútil de pó, todo o pó da vida, sem querer às vezes, forçados, às vezes dormindo, às vezes morto. E voltamos à poeira vermelha da terra. E voltamos ao sujo da vida. O sujo mais limpo de nascer de novo. O nada. E caía, como Alice cai no País das Maravilhas, e crescie diminuí em questões de segundos num período incontável, porque eu pude, não porque me obrigaram. Obrigar é uma coisa que dói. Mas obrigar é necessário. Dicotomias infames. E se eu for deserdada? Um dia, numa segunda-feira qualquer, quando eu ainda mastigava os restos de ovo frito, uma voz soou como uma agulha no meu ouvido e disse, não tanto porque ela queria, mas porque precisava, que deserdaria sua filha. Palavras duras em voz mansa. Palavras superficiais, mas doloridas.
Acordei. Esse espinho me deixou alegre como o diabo. Cutuquei até sair sangue e agora bebo dele. O meu. E sempre a gente ressurge das cinzas, do negro. Então me retoquei, sorri sozinha dentro do ônibus, sonolenta e não reneguei a vida e aceitei como era. Porque é assim. Aceitação. Isso tem me martelado sempre. A vida. O destino. O universo como centro das conspirações. E eu? Um ponto nesse infinito de retas. Nenhuma curva. Alguém me dê a mão e curve comigo o rio. Quebre esse ângulo. Ressurgi de mim. Uma aceitação, não sei se breve, não sei se pra sempre.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Pássaro Alegre

A coisa mais linda que eu vi na minha vida, que inunda meu coração de alegria, meu amor. Te espero com toda saudade do mundo. E ouço sua voz ecoando por dentro de mim, passando por cada célula e sorrio por que te sinto comigo sempre e te protejo, te envolvo, te faço uma pantera branca onde te pinto com minhas cores, te adoro. E é você a luz dos meus olhos, é você quem me sacode o coração.
Pra gente, um dia, correr no campo florido.
Pra você se lembrar de mim.
Faz amor comigo?

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Remoto

Ai que me deu cãimbra no pé.
Ai, que esse tempo passa lento e demorado, mas passa rápido.
Quando se quer uma coisa e não sabe o que é.
Quando se sabe, finge que não tem.
Uma bolacha em cima. Duas bolachas recheadas.
O dia explodindo de maravilhoso lá fora e eu, e eu aqui, mexendo meus dedos nesse teclado.
E eu aqui, morrendo aos poucos aos som de qualquer coisa.
Um carro lá fora. Esse bairro de São Paulo que parece interior. Um silêncio.
O caminhão do gás não passou hoje com aquela música chata.
E logo estarei em Tatuí.
Se Drummond cantando, seria Itabira.
Mas Tatuí... Que coisa maravilhosa.
Tem a comida da minha mãe, os beijos insanos da minha avó,
meu irmão chato, nossas brigas
O meu quarto.

Ai que quero ir embora.
Ai, que essa vida não demora.
E de pé vejo toda a cidade. Lá do alto. No pôr do sol.
Ai, que essa dor, esse amor louco por tudo
esse desprezo fútil
por tudo
essa coisa emaranhada no peito,
de que jeito?
que vontade pular da janela e voar
nesse imenso céu azul
no canto do pássaro
mas estou presa.

Ai, que me dói.
Mas não destrói.
Me corroe
caatinga.

Quero ouvir uma modinha sertaneja.
Pra lembrá da minha infância
e do meu avô
e do meu pai.
Ai.

E Soletram o Mundo

"Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma carta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem."
                                                                     Drummond


Sinto-me forte por não ter desistido de tudo. Embora eu fuja constantemente do que me machuca, consigo me manter na minha bolha doce nessa vida amarga e nem dei ao universo o gosto de vitória. Doloroso. Não encaro as coisas de frente e ontem meu amigo me perguntou: " até quando você vai fugir?" . Fiquei quieta. Por um momento me senti inferior, mas oprimir os outros pensando que se é forte não quer dizer que você seja. Então respirei bem fundo. Pensei que talvez meu destino seja fugir, como o destino de outrem seja, talvez, encarar tudo de frente, achar que deve seguir o fluxo. Mas eu nunca segui o fluxo e meu ritmo nunca foi o mesmo. Talvez eu não tenha mudado nada. Ou tenha me tornado outra pessoa. Mas seguir tudo isso que me impõem, me dói tanto. Um buraco sem fim, um labirinto. O velho funil que já começa na infância e eu sempre fui a descartada. E não falo isso com ar de tristeza, mas um pouco de orgulho e revolta. Fui obrigada a fugir, me obriguei a tornar meu mundo mais colorido e florido nessa imensidão solitária e cinza. Sempre fugia para um campo verde e ensolarado, o imenso o pasto, onde tudo me é mais bonicto e me traz mais verdade do que pensar que tenho que me tornar gente grande pra prestar serviço nessa porcaria de sociedade que me consome e me obriga a consumi-la. Meu mundo é de retratos. Meu mundo é de literatura. " Tenho em mim todos os sonhos do mundo" e nem sempre eles condizem com a realidade. Fugi e fujo. Minha válvula de escape. Se me obrigam a isso, parto para aquilo. Se aquilo me pesa, parto pra isso. E vou sempre nesse tortuoso e eterno caminho de fuga, de tentar tirar mais prazer no que eu posso. O prazer sempre vem depois da dor. Mas parece que a dor vive em mim, então a todo momento preciso escapar disso, ou não. Não reclamo da dor. Ela vem, quase que sempre, de mim mesma. E me sinto forte sendo como sou. Se não sou boa nisso, aquilo eu farei com muito empenho, mas aquilo que me agrada. Não fomos feitos pra aceitar tudo. Ainda mais um tudo vomitado, que passou de geração em geração e nunca, jamais, deu certo. Morrendo deixarei meus caminhos de fuga. Outro que morra deixará seus bens materiais, uma casa, um tradição quadrada, o machismo, um preconceito, a vida dentro desse retângulo com bolinhas. Como me dói. Como me dá asco esse sistema-mor onde se cria as pessoas num estábulo. Te marcam na pele com ferro quente. Te levam com os olhos tapados, no cabresto. Montam em cima de você e então você é seleccionado se suportar a dor, você é aceito no clube deles se for mais forte. E quem disse que não posso ser fraca?
Se me deixo levar é porque nunca fiz questão de ficar nesse plano imbecil de querer ser mais. Apenas sou. E ser mais ou menos não me torna melhor ou pior, nem do mendigo, nem do cachorro, nem do político.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.