quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Dos Repousados Lábios Bonictos.

Dentro do ônibus lotado, indo pra lá e pra cá naquele mar de gente condensado, na balburdia, de repente, ela se deparou com  um moço sentado na sua frente. De pé, segurando no apoio amarelo e engordurado, viu o rapaz que dormia, encostado com a cabeça no assento. Ouvia música e parecia um pouco pálido. A barba por fazer, quase cinza, rala, contornava a boca, que era muito bonicta e desenhada cuidadosamente. Era também, uma boca quase pálida. Enfeitiçou-se. Ele sequer abriu os olhos durante a viagem. Entravam mais pessoas, apertavam, arrastavam o braço do outro, mas ela continuava ali, olhando a boca do moço que dormia. Sentiu vontade de beijá-la. O que aconteceria? Ela o acordaria do sono profundo, como uma princesa, num papel inverso das estórias maravilhosas? Ele dormia. Vontade louca de beijá-lo. Delicadamente. Abruptamente. Beijo inocente de quem apenas sentiu vontade de beijar uma boca bonicta. Não haveria problema algum. E os outros passageiros? Agora o ônibus corre atravessando a ponte. Já é noite, poucos carros estão nas ruas. Muitas gentes estão nos ônibus. Quando na vida haveria de encontrar outra boca tão delineada como aquela? E se encontrasse, estaria repousando, esperando o beijo da sapa? Não haveria. Lábios como aqueles, esperando serem beijados, não, não podia. O moço era careca. Que sereno seu sono. Dentro dela seria sereno? Fora era um barulho de gente cansada, densa. Quase dormiam em pé. Olhou quase todos que podia avistar, ninguém. Ninguém com boca de semelhança tão bela. Vontade de beijá-lo, vontade de beijá-lo. Não acorda, torceu. Queria beijá-lo sem que ele soubesse que seria beijado num ônibus, à noite, voltando pra casa talvez, depois do trabalho ou faculdade. Ela estava ali por acaso, quem nem sabia muito bem o porquê. Mas estava. Respirou fundo. Olhou para os lados. Passageiros sonolentos. Vento frio lá fora, deve estar frio, talvez pensassem. Inclinou-se um pouco. Rapidamente o beijou. Brusco. Num susto ele arregalou os olhos, os fones saltaram do ouvido. Olhou-a absorto, inconcreto, talvez estivesse sonhando. Ele não era um príncipe, muito menos ela seria uma princesa. Engasgou, não sabia o que falar, nem ele, nem ela. Os olhos dela baixaram, brilhando, felizes e com medo. Beijou. Mas chegou o ponto de descer. Tocou a campainha, sacudiu o corpo nos buracos das ruas. Um último suspiro, ele ainda estava dormindo e a boca, a boca meio aberta, respirando a noite fria.

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