domingo, 21 de novembro de 2010

Passa, ave

"Esquecemos mesmo sabendo que estamos esquecendo. Pessoas, sentimentos, tudo vai embora, inclusive nós mesmos: tempo. Para sempre passa."
Às vezes eu acho que tudo que vivi e tenho como concreto me cai por terra em questões de segundos. Sempre vou achar que passa, e passa mesmo. Mas sempre volta de uma outra maneira, talvez mais dolorida, talvez nova de doer o coração. Passa quase não passando, como uma ferpa de roupa grudada no arame farpado

Inconforme

O céu azul pintado de nuvens brancas escassas e raras, diluídas na vida do mundo, me cobria como um manto cobre uma criança que dorme. O vento batia na minha cara enquanto eu corria pela rua deserta. O asfalto era quente e no ar misturava-se um cheiro de terra seca e vermelha. Meu pé esquentava a cada passo que eu dava. Chutava uma pedra aqui que às vezes ela ia longe, mas viriam outras pela frente. Eu corria e não me cansava nunca, as nuvens diminuiam o meu ar, mas meu pulmão explodia de alegria sentindo o cheiro da terra que pintava minhas narinas. Tossi. Engasguei com a poeira. Não sei porque meus pés não paravam nunca, como se fugisse de uma prisão a qual pôde só agora escapar, depois de anos, décadas, milênios. E se aquilo não fosse meu? E se eu estivesse pagando por um crime que eu nunca cometi?

Dias passados, talvez anos dilatados no tempo comprido de uma infinita gota que cai na pia suja do banheiro, dou-me por mim. Já não sou mais a mesma. Mudei. E mudar não necessariamente significa crescer. E crescer não significa mudar. Era eu então a mesma desde sempre? E o outro que me interfere?

Creio num deus. Não entendo como algum deus não aceita o amor. Não creio em homens que falam por deus. Destroem o mundo. Inútil tudo nessa vida: teremos o mesmo fim. Talvez justificará o meio? Esse meio sufocante, crimes cometidos, abusos psicológicos, miséria de essência, a solidão. Reduzidos em meros seres que respiram. O essencial é viver, clara manhã?

Por que me pergunto tanto coisas que já existem? E se eu devesse cometer algum crime, e se o sol nunca mais nascesse, e se as pessoas ... pessoas. Elas mesmas. Nunca.

Domingo é capaz de qualquer coisa. Qualquer ar diferente pra escapar dessa vida. E não é a morte, finalidade máxima do meu ser, mas renascer aqui, quem sabe outra, quem sabe nunca, quem sabe tudo.

Esse sol me deixa comovida. É um sol de domingo, nem forte e nem fraco, mas quente que dói o coração. Talvez o frio me aconchegasse. Sequer consigo ler uma frase alheia, sequer consigo olhar para os outros. Queria gritar, mas não posso. Só choro, meu deus, choro. Nem conhaque há. Nem beber eu consigo, somente essa coisa salgada que cai de um olho, depois o outro, numa sincronia. Vivo. O essencial é viver?

sábado, 20 de novembro de 2010

Cartas Tombadas - IV

Ah! Mariinha, se você soubesse o quanto meu coraçãozinho está machucado. O quanto eu continuo achando essa vida tão absurda, essa perda constante das coisas que dói eternamente, nunca apaga, nunca.
Queria você e o Lulu aqui do meu lado, a solidão é muita. A casa está vazia e me pego pensando em bobagens. Muitas bobagens de doer danadamente o peito. Tudo dói, Marri. Inclusive essa sua falta.

Estou triste, muito triste. Nada que me faça pensar o contrário. Nem uma faísca de memória boa do pôr-do-sol que eu vi hoje. Nada. A vida é nada. Nem sonho.

Lágrimas

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

Momento

aqui, do meu ladinho, quentinho, na cama...

dos sete meses
do amor
do prazer

ah, esse corpo
esse calor
me engole
me tudo
me prende a boca com a mão
e a outra
hm, a outra
segura meu coração

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Cartas Tombadas - III

Dia de novembro.

Dias de calor, Maria. Dias loucos de calor. Mas hoje vai chover, o dia amanheceu cinza e já chuviscou nessa terra abençoada.
Você choverá na horta? E se eu morrer de secura?
Lulu deve estar com medo desses relâmpagos, que no céu, devem ser mais intensos. Pode ser que, cada vez que ele lata, um trovão se manifeste por aqui. Mas eu não sei. Nem sei se saberei um dia. Nem sei se existe céu, se existe vida, se existe isto, que chamamos de nós.
Mas eu e você existimos e eu confirmo isso, sabe como, bonictinha, porque a saudade que sinto de você é muito forte, então deve ser isso mesmo. Entendeu? Não importa.
Estou com fome, morrendo de vontade de comer aquela sua sopa de feijão. O resto ia tudo pro Lulu... que está enterrado no quintal da Antonieta. Sim, eu já te disse, na outra carta, mas repito, caso ela não tenha chegado ainda. Fome, estou com fome mesmo. Estou só, somente só. Se Lulu estivesse, estaria dormindo encostado no meu pé do lado do sofá. Que criatura agradável que ele era.

Mande lembranças.
Chova por aqui.
Chore por mim.

Abraços de lágrimas... boas.

sábado, 6 de novembro de 2010

Cartas Tombadas - II

Mariinha

O que é você sem mim, Mariinha? Trigo sem farinha?
Ou eu que não sou sem você, Mari- Maria- Mariazinha?
(O sol nasce pra nós
logo assim que se põe?)
Não ia te dizer, mas o Lulu foi enterrado no quintal da Antonieta.
Ninguém quis, como você queria, enterrá-lo no cemitério. Que cemitério não é lugar de cachorro.
É lugar de gente ? - perguntei-me. Por que se for lembrar daquela cadela da Marieugênia... convenhamos.
E a vovó não quis enterrá-lo no quintal dela, que é onde deveria de ser, porque não queria alma de cachorro assombrando as plantas. Mas ela disse rindo, assim, na verdade eu não sei porque ela não quis. E a Antonieta já está velhinha, tem outros cachorros, não se importou de o enterrarem lá. Logo é ela que vai pro mesmo lugar... mas pro cemitério, que é lugar de gente, de gente boa. Quando eu morrer quero ser queimado e jogar minhas cinzas pelo vento e colorir as árvores de preto e branco. Fim. Mais nada. Nem verme me corroendo nem olho esbugalhando. Não fiz isso com o Lulu porque senão... iam falar que é tudo do contra, que é pecado enterrar cachorro em cemitério, mas que também não pode queimar o coitadinho. Nem o céu, nem o inferno. Queriam ele na terra depois de morto.
Coitado. Ah, que saudade que me dá dele quando lembro de você e que saudade de você quando me lembro dele. Como se fossem um só. Só que você ainda em cima da terra e ele embaixo. O que não é de todo ruim, porque você é meu vaso colorido de flores vermelhas. Você é as própias flores. Você é linda, Mariinha.

Você é a gotinha de água que cai da nuvem e eu sou a terra que você molha e guarda o Lulu.

Um grão de beijo roubado molhado de terra.

Cartas Tombadas- I

Mariinha.

Escrevo-lhe para dizer que o Lulu ficou doente e morreu.
Poi sim, morreu.
Sequer latiu. Morreu feliz, com uma pomba na boca.
E isso é tudo.

Abraços cheirosos