segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Carona no Guarda-Chuva

Desci do ônibus. Uma chuva meio fraca, com gotas caindo da cabeça bem na minha boca. Era noite. Poucas outras pessoas desceram do ônibus. Atravessei a rua, peguei meu guarda-chuva do lado da mochila, olhei pra ele, quebrado, senti vergonha de abrir e o segurei na mão. Atrás ouvi alguém me chamando. Olhei meio desconfiada, uma menina perguntando se eu tinha guarda chuva, e sem me deixar responder me ofereceu carona no dela, depois olhou minha mão e viu que eu tinha um.
- Quebrado, eu disse, não quis abrir... e entrei debaixo do guarda-chuva dela.
- Você sempre dá carona no seu guarda-chuva? - perguntei
- Sim... acho desumano ver alguém do seu lado sem um e você tendo espaço no seu...
Quando ouvi "desumano" já comecei a gostar dela. Que misteriosa. Caminhamos pelo caminhozinho feio até sair pelo portãozinho.
- Você faz o que aqui?
- Odonto. - respondeu-me. Silêncio, alguns passos. E você?
- Letras.
Silêncio de novo. Senti um perfume meio doce que vinha dela, era gostoso, me lembrava alguém. Me lembrou de relance alguém que conhecera no cursinho, uma menina, Ana, que na verdade tinha um perfume muito diferente do dela, muito forte e muito doce.
- Você mora onde?
- Sabe aque...
- Pra esquerda ou pra direita?
- Hm, bem... pra... (pensando que lado é esquerda e que lado é direta...) direta, depois direita de novo... e você?
- Pra direita também, mas depois sigo pela esquerda.
E desenvolvi uma rápida tese que a maioria das pessoas iam praquele lado dela.
- Eu sempre vou sozinha por aquele caminho feio, mas estou acostumada.
Já não estava mais chovendo. Alguns pingos esporádicos pela rua, mas continuei debaixo do guarda-chuva, meio corcunda, meio sem graça. Nunca na vida peguei carona em um. Descemos as escadinhas chatas, quase ninguém na rua, barulhos de pingos. Não a vi direito, estava escuro com aquelas luzes laranjas que iluminam metade da gente e a outra metade, já negra por dentro, continua a dormir. Ela estava de toca da blusa que era azul marinho, tinha uma franja curta, pele clara, rosto fino e o perfume. Carregava seu material, talvez uma bolsa, talvez não e segurava o guarda-chuva. Tinha um sotaque diferente que eu diria ser baiano, mas também não era. Nunca ouvi antes.
- Você é de onde?
- Goiás. E você?
- Do interior. Interior de São Paulo.
Quase na bifurcação ainda senti de novo um cheiro mais nítido do seu perfume. Ela não tinha me olhado nos olhos, olhava pro chão, vendo o caminho molhado. Talvez estivesse com medo de mim, ou vergonha. Mas deveria ser especialista em caronas a pé.
- Estamos chegando, você vai pra onde?
- Pra cá, apontei com a mão pra direita, e o seu nome?
- Érica.
Érica, Érica, com C ou com K? pensei comigo.
-... e o seu?
- Cássia. Bem, muito obrigada.
- Boa noite.
- Boa noite
E seguimos por caminhos opostos, ambas sozinhas. Talvez um rapaz ia na minha frente, de guarda-chuva, mas mal chovia e outro alguém ainda na frente do rapaz da minha frente, mas já o havia perdido de vista. Olhei pro poste para ver a intensidade da chuva, era fraca mesmo. De carona, balbuciava. O perfume se diluiu com o quase frio e com a quase chuva. Olhei pra trás, de praxe, ela já tinha ido. Encontraria alguém para dar carona? Rua escura, noite escura. Não a reconhecerei novamente. E segui, o guarda-chuva na mão, olhando para o céu, pensando nalguém tão humano que te acolhe com um guarda-chuva, preto, como todos, depois de descer do ônibus, mais uma noite, mais uma vez essa garoa, segui, concluindo minha rápida tese que a maioria das pessoas iam praquele lado dela, e não era totalmente verdade.

domingo, 26 de setembro de 2010

A Maçaneta

Entrou correndo no quarto e foi impedido bruscamente pela maçaneta da porta, que agarrou sua blusa e o puxou de volta para trás, num ímpeto, como se mandasse no quarto pequeno e sujo. 'Ah, me solta, filha da puta', e mais outros palavrões. Era só uma maçaneta. Muito ódio, não conseguia se soltar, quase desfiou a blusa, alargou, é facto, mas era uma maçaneta e nem vida tinha. Quem disse? Já nem lembrava porque entrou correndo. Parou, respirou, olhou a porta. Voltou. "Ordinária". Caminhou até a janela por onde entrava um vento gelado de domingo à noite, primavera, outra estação, ele continuava o mesmo.
Brisa gostosa. Lá fora tudo quieto. Todo um sono amparado pelo clima plúmbeo de domingo. Chuva. Céus. O que vim fazer? Olhar a janela?
E avistou do seu apartamento no último andar, lá embaixo, um casal passeando com seu cachorro. Um poodle preto. Pensou que odiava poodles. Achou incrível como na rua toda, de 20 casas, 19 tinham poodles, de maioria branca, pretos eram raros e latiam feito condenados quando se passava pela frente do portão com grade, pela prisão domiciliar tanto dos bichos quanto dos homens. Poodles irritantes. Ele latia também, irritado, brigando com os cachorros. Latia alto, chutava o portão, dane-se se alguém via, vai te catar, cachorro chato dos infernos. Até pensava, por bobagem, que na outra vida tinha sido cachorro, tão bem latia. Quis latir da janela lá em cima. Pra quê? O casal já se tinha ido. Coisa besta. Voltou-se para dentro, o quarto desarrumado. Hora besta. Vida vazia. O vento frio da janela o fez ter vontade incontrolável de fazer xixi. Apertou as pernas, segurou o pinto. Encurvou-se de novo, respirou fundo. Fechou o vitrô. Xixi quase saindo. Latido rápido, num arranque correu para o banheiro, porta semi-aberta, maçaneta amiga, enroscou-se. Mil palavras agradáveis. Latidos e uivos. E fez xixi na calça.

sábado, 18 de setembro de 2010

As mesmas coisas

" Que triste não saber florir"

Pareço estar meio assim, sem florir, sem saber escrever. Meio sem vontade, mesmo estando borbulhando por dentro. Como se eu mesma me impedisse disso e não houvesse nenhuma fissura de escape, qualquer furinho que deixasse escapar o vapor. Nada.

E se eu contasse dos meus causos? Talvez alguma coisa engraçada, um redemoinho, um constrangimento. Nada. Amores, delírios, sim. Isso sim, mas eu não conseguia traduzir.
Pobre. Me senti seca. Palavras curtas. Raios. Mas nem o sertão é tão seco assim. Um passarinho que morre e fica na rua, secando ao sol, sendo esmagado por carros e pés apressados.
E se ninguém me esmagava? Porque eu não escrevo sem apagar? Como era antes, como sempre foi. Porque agora eu era outra, tentava ser. Aquela que tenta ser organizada, que tenta crescer, levar um pouco mais a sério. Sem balanço nem gangorra, e isso era muito difícil. Se tivesse 30 anos ainda assim faria isso, porque a idade não quer dizer que você pode fazer as coisas e deixar de fazer outras. Você só deixa de fazer porque quer. Sempre penso que somos tão esmagados por conceitos inúteis de idade, sexo, cor, religião, sociedade. E eu também sou uma vítima disso, caso contrário não estaria aqui escrevendo, apagando, errando, fissurada na minha própria bolha líquida nem sei se colorida agora, mas sim preta e branca, em contraste.

Encontraste?
Insetos em volta da lâmpada, mas era dia. Mas era meio dia e ainda tinha mais doze horas para enfrentar, cara a cara com ela mesma. Mais doze pesadas horas que seguiam lentamente num ritmo acelerado, o coração pulsando a mil, as mãos suadas num tempo seco. Nenhum suor escorrendo na testa, mas por dentro o líquido borbulhava. Nada em volta mudou. Era enfadonhamente a mesma coisa todo dia, o caminhão do gás, o carro da pamonha, um anúncio de supermercado, o menino de bicicleta levando o pão numa cesta, a japonesa andando no quintal da sua casa durante muito tempo com o mesmo chapéu de sol. Quem era toda essa gente? O que era ela pensando nessa gente toda? Ninguém sequer imaginava que era pensado por outro alguém, outro alguém desconhecido, outro alguém tão solitário quanto eles aguentando todo dia a mesma música do gás, o mesmo anúncio da pamonha o mesmo chão com as mesmas pedras. E pra mim tudo aquilo era novo. Era um ciclo, que talvez acabasse um dia, talvez não. Mas era novo velho. Por um momento me pensei velha e nova caminhando no meu ciclo vital, as mesmas preocupações transportadas em outros corpos. A criança velha, a velha criança que mudaria de tempos em tempos, durante anos, durante décadas e morreria sem saber o que era, deixaria de pensar nessas pessoas que também morreriam, mais cedo ou mais tarde. Os pensamentos que pensavam essas pessoas morreriam por completo também. Os ciclos que talvez um dia se cruzaram, sobrepuseram-se ou nunca se chocaram, seriam os ciclos de outras pessoas em outras situações, mas sempre os mesmo. E o caminhão de gás anunciou na esquina. 

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Indefinido

Preciso de uma palavra pra começar. Qualquer coisa que me faça continuar depois. Uma sílaba, um ponto. E nada vem... veio isso. E comecei.

Um cordão vermelho dentro de uma caneca enorme com a asa quebrada. Um cadarço, desconfio. Junto tem mais um monte de quinquilharias, papel, palito de sorvete, lixa de unha, canetinha e se abusar, outros lixos sentimentais de alguém que os deixou ali. E continuou.
Que o dia está cinza e um pouco frio e a garganta fica meio roçando. Esqueci o cordão vermelho. E tentei pensar em outra coisa, só pra escrever mesmo. Catraca!

Agora eu precisava de uma palavra pra terminar, por que não veio o resto, nem sei se viria. Decidi terminar por aqui mesmo, sem nada concluído, sem saber o que seria se eu continuasse a dizer o que não sabia. Quem sabe depois, outra hora, quando eu começar de novo.

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Com Sabor de Fruta Mordida

Perfume de frutas secas. Meu coração seco cheirando saudade. Pela casa toda, pelo vitrô, exala esse cheiro de um tempo que não foi. As frutas ainda estão ali, podres. Não tive coragem, nem ânimo de tirá-las. Queria muito tê-las jogado fora no primeiro minuto que fechei os olhos e caí no chão, chorando, uma maçã espatifada sem semente.
Mas não é ódio. Não é nada, aliás. É comigo. Desde que você se foi, se é que foi mesmo, voltei meus olhos para mim mesma, mais superficialmente, mais to-nem-aí-com-a-vida. Deixei de perceber um pouco o canto dos pássaros, as nuvens no céu, os olhos enluarados que me comiam, os ninhos de mafagafos, se é também que já vi algum. Deito e rolo. Acontece que hoje, ao cair da tarde, ao levantar da noite, solidão em casa ouvindo o silêncio da rua e às vezes um latido de cachorro, me dei conta mesmo que você foi embora. Me dei conta de que as fotos que vejo suas não me têm mais ao seu lado. Que não sou mais o preto que completa seu branco, nem o pio do passarinho da manhã.
Metodicamente, todo dia, quando acordo, olho a hora no celular, coço a barriga e corro pro banheiro, indo na ponta dos pés. Sempre tive mania de, quando descalça, andar com uma parte do pé, mesmo que estivesse sujo, prestei atenção nisso algum tempo atrás. Olho a luz do sol entrando pelo vitrô do banheiro enquanto faço xixi balançando os pézinhos mornos ainda do cobertor. Pensamento vazio de manhã. Depois lavo o rosto malemá, porque esqueço de prender o cabelo e se eu abaixar, ele molha. Aí vou pra cozinha, olho a fruteira, a mesma coisa de sempre - no fundo também tenho preguiça de tirá-las. Na gaveta da geladeira tem mais, mas frescas. Corto alguma e ponho no meu cereal. Sento no sofá e pareço não ser nada, nem ninguém. Não tenho memória e a única coisa que ficou foi você nesse cheiro insuportável de fruta passada, quase virando sopa no vaso, quase fazendo parte de mim. Não consigo mais comer o cereal. Olho o céu e choro, choro, menino, de soluçar. Se eu morresse ninguém sentiria falta, nem sentiriam meu cheiro de podridão, mas me mandariam uma carta para jogar fora estas frutas.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Pés

Parei no metro para esperá-la. Fiquei meia hora na espera. Muitas pessoas passavam, entravam e saíam. Li um livro, olhei, reli, olhei as pessoas novamente. Olhava o relógio... condensado. Às vezes acho que parei na vida. Tanta gente passando por mim, quantas pegadas marcando o chão sujo, meus olhos, meu pé estático. Às vezes acho que espero da vida. Respirei fundo. Tudo em volta flui muito bem enquanto fico parada observando os outros, observando alguma história que não é minha, alguém que me pergunta o preço da passagem do ônibus, outro que pergunta onde fica tal rua " estamos nela, é só subir...". Sede, muita sede.
Sensação absurda de ficar enquanto os outros vão. Um pressentimento que, enfadonhamente, me faz calcar as unhas no chão atoa, pura bobagem. E que não sei como mudar isso, como fluir, como passar a catraca sem pular, sem ir só de escada rolante. Ironicamente estava terminando de ler On The Road... chegaram no México. Eles vão, passam, uma formiga que morde e faz ir, apenas ir.
Já cheguei a achar que sou eu quem passo, mas o relógio marca sempre a mesma hora.