quinta-feira, 27 de maio de 2010

Eu que Ainda Outono Inconstante

Quando li "maio" no calendariozinho da geladeira, imaginei, repentinamente que ainda por essas bandas, no ano passado, eu não havia ainda te conhecido. Eu namorava e achava que, talvez, casaria e tivesse filhos com ela. Não tive. Nem sequer durou muito tempo, mas tempo suficiente para me acabar em lágrimas num sábado, às 6 horas da manhã. O dia ardendo de tão bonicto e aquela beleza toda me doía sozinha, porque eu queria que outros olhos compatilhassem comigo o outono. Era outono quando ela me deixou. E é outono agora eu olhando tuas fotos.
E é inútil eu dizer que o outono é uma das estações mais lindas...e é, afinal, e uma das minhas preferidas. Mas eu queria você e o outono tudo junto pra mim. Até agora não arranjei uma saída. Só em sonhos. Afinal, queria contar que tenho sonhado com você numa média de uma ou duas vezes por semana e são sonhos maravilhosos que te trazem pra pertinho de mim. Hoje sonhei que havia ganhado 5 mil reais. A primeira coisa que pensei foi em viajar... pra você, é claro. Aí acordei e não tinha mais nada. Algumas moedas, uma nota de vinte na gaveta e uma vontade imensa de sair sozinha pedindo carona. Sim, ainda me dói, não sei se mais ou se menos de quando estávamos juntas, mas dói e a saudade me corroe por dentro. Mas eu sorrio e sorrio sempre que te vejo ainda com esse ar de esperança, não sei, esse ar de que a minha bolha colorida ainda te guarda sem você saber e que te acompanha em qualquer lugar que você esteja. Um pássaro talvez. Nosso pássaro-leão que te segue e depois me traz os bilhetes escritos num papel invisível que só eu sei ler. E te guarda, te protege, te mima. Não, você não sabe. Desde quando você acorda de manhã, morrendo de sono e com a voz rouca (de como quando eu ligava de madrugada pra te ouvir) e come um bauru com café que você mesma faz, até a hora de dormir no seu edredon cheiroso de menina bela de cabelos macios. Até a hora de alguém te ligar de noite e você morrer de sono, precisando dormir pra acordar cedo no outro dia, e me acordava sempre às 9 horas da manhã, falando que você havia acordado faz tempo e essa coisa de quem trabalha cedo.
Maio. Quase junho. Lá pelo final de julho fui te encontrar, uma photo em preto e branco, namorando. Começo de agosto eu já havia caído no seu eterno veneno silencioso que me envolveria e me prenderia até agora, até depois, até quando o outono insconstante de dentro de mim se tornasse uma linha pontilhada. O seu cheiro, o seu olhar, sua risada maravilhosa e os beijos que mandávamos na madrugada, quando todo mundo já havia dormido e eu ficava fazendo caretas pra você. Queria muito, imensamente, que as coisas fossem diferentes, mas pensei por um momento que se fossem diferentes talvez não tivessem a beleza e a dor de ser assim como é. De ter essa esperança. De poder te esperar e não saber se é ou se não é, se vai ser ou se vou te esperar pelo resto da minha vida lendo tuas cartas cheirosas sem cheiro e amareladas. Quantos outonos ainda terei de passar sozinha e não compartilhar com você a folha seca pra pisar, a flor pra roubar. Compartilho isso todo dia, mentalmente, mas não sei se isso me cabe e tento justificar pra mim mesma, porque dói e dói e dói tanto, que a dor passa a tomar conta e fazer parte de mim, na esperança de um dia não ser mais dor. Na esperança de te encontrar e se transformar em alegria de tudo que eu guardei só pra você nesses tempos de distância.

É maio. Eu ainda não tinha te conhecido. É outono. É céu azul e inconstante em São Paulo, tempo de chuva, frio, calor... tudo que lembra a mim, tão inconstante como essa cidade selvagem. Continuo vendo tuas photos divididas em categorias, uma mais linda do que a outra, eternizando o teu sorriso que nunca mais encontrei em lugar nenhum, eternizando o teu olhar, a tua expressão calada, séria, alta... teu rosto e paixão que nunca saem de mim. E eu não quero que saia nunca.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Classificação Periódica dos Elementos

Com um lápis na mão, ignorando a distância entre eles, rabiscou qualquer coisa que soasse como raiva. De afincar a ponta no lápis no papel e quase rasgá-lo. Traços fortes. Ignorando a lua, a linha, o ponto.
O ponto poderia ser qualquer coisa. Um ponto poderia ser muitos pontos, assim como uma reta se constitui de muito deles. O ponto era o ponto inicial de tudo...inclusive da raiva e da ponta do lápis.
Cantando ainda uma música qualquer que havia aprendido na infância, acalmou-se e seus traços agora eram mais fracos. Qualquer desenho. Não eram sonhos, eram pesadelos. Dormiu muito mal à noite. Acordou suando, com medo, tudo estava pesado, denso e sua cabeça parecia estar de acordo com o que havia sonhado. Feio. Muito feio. Não desejaria aquele pesadelo nem para seu pior inimigo. Talvez. Ficou perturbado o dia todo. Saiu para ir ao supermercado, não fazia fria, e ia um pouco pelo sol para esquentar um pouco seu gélido corpo cheio de pesadelos. Reconstitui no caminho, a sequência terrível a qual havia sonhado. Assassinato, pessoas correndo, helicóptero. Mas esses elementos nada haviam de significar alguma coisa. Lembrou-se dos gritos, do desespero, era tão real. E achou que sonhar era muito real. Nunca havia passado tanto pavor assim, na vida real. Pelo que consta. Uma barbárie. É que tudo estava tão dentro dele, era dele aquilo, da cabeça, do peito, do lixo de excrementos. Fósforo, enxofre, telúrio.

Ainda rabiscando. Pensativo. Carregado de tarefas para fazer. Não poderia chutar o balde dessa vez. Sempre chuta. Odeia compromissos que soem como enforcá-lo. Não prestam. Queria ser livre. Mas os pesadelos o prendiam. Livre é uma palavra muito restrita. Porque de restrições a vida é feita. Concluiu.
Fechou o quadrado com a ponta do lápis já pequena, gasta, sofrida. E o desenhou dentro da moldura. Não sairia de lá . Só se apagasse e o desenhasse em outro papel.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Carta à Lerelovisky. Vulgo Lere Lere.

Venha logo, morena
A saudade é grande

pesa, lembra
Venha logo, menina

brincar de pipa, fazer piquenique
morrer de rir, dançar igual filme

na nossa lavoura imaginária.
Na nossa bolha teatral.

Quanta saudade. Até do burrinho
e das palmas
e do feijão da sua mãe.
Venha logo, que tá todo mundo te esperando,
cantando Adriana, Biscate
ou Telegrama. Venha venha venha.
Fico meio sem graça sem você, triste, tristinha,
mais solitária que um paulistano.
Que você sabe, isso aqui é um mar que te engole.
Mas todos juntos, mas nós com nosso carinho
e amor e amizade
a gente se ajuda.
Venha que to te esperando de braços abertos
e camera na mão.


sexta-feira, 21 de maio de 2010

Entre as Linhas das Minhas Mãos

 "Na solidão de indivíduo desaprendi 
a linguagem com que os homens se comunicam"
Drummond

Era estático. Seria estático se não fosse por caminhar lentamente.
O ritmo era daqueles atores lentos numa peça acelerada. Eram flashes. O meu tempo nunca foi universal.
Assustei-me ao colocar a cabeça para fora da porta do mundo. Era tudo diferente daqui de dentro. As pessoas corriam, ao invés de andarem e se matavam em busca de um sangue alheio que nunca lhes pertenceu. Se amavam, eu não sei. Mas o meu amor era lento, vermelho escorrendo do pico da montanha. O meu amor era um absurdo quando olhado de frente.
Haviam muitas pedras no meio do caminho, mas eu ia lento. Cada passo meu eram vinte dos que passavam por mim. Quando minha lágrima pensava em cair, as pessoas já haviam secado as delas e sorriam novamente. Minha mão era fria por causa do vento que passava. Meu coração era quente por que o frio demorava para chegar até lá.
E ele era longe. Ele batia desritmado. Nos poucos momentos de sufoco e aceleração senti meu ar esvaziando. Não consegui respirar, eram coisas de toda parte querendo me invadir.
Parei. Era preciso seguir meu ritmo. E era preciso também correr. Pra quem vai lento toda vida, correr uma vez pelo campo era dilacerar o coração. Mas pra quem corria, andar devagar olhando a cortina se abrindo aos poucos, era tédio.
Meu ser é de flor e meus espinhos me cortam. A rosa ao lado também me machucava com sua ponta. E do outro eram urtigas que frequentemente me queimavam. Quando o vento batia, cegava-me de poeira. E era dificíl ver tudo de novo. Não furei o asfalto. Nem sei se nasci na rua. Mas a terra que me fecundou era toda feita de saudade. A terra exalava melodias de ternura, e cada nota ainda pulsa junto com meu sangue.
Uma era selvagem. A outra calma como o frio de outono. Uma era cinza e me engolia. A outra era verde e azul e estendia as mãos para mim. E eu ficava no meio. Um ritmo aqui e outro lá. A vida era muito simples antes de querer ser alguém. E eu pensava então, que se eu seguisse minha trilha como sempre segui, pudesse me doer menos. Mas eu já havia me contaminado. Ou não. Talvez haja tempo para tudo. Mas esse tudo demoraria como tudo me demorou. E às vezes falo isso com ar pesado de quem abriu a porta do mundo. Às vezes falo como alguém que não conheceu o que há lá fora. E eu não sei se abrir meus olhos naquela luz que entrava era uma solução. A solução não era aquele quadrado e nem aquele círculo. Talvez se eu recortasse as bolinhas.
Meu ser é lento. Em preto e branco as coisas me passavam. Em colorido elas se mostravam a mim com pouco tempo de duração, e era tudo alegria. Desconfiei que a vida em preto e branco tomava conta de todas as pedras, mas eram poucas que enxergavam o colorido constrastado. Porque essas corem eram a única coisa boa que vinha da fresta da porta. Embora eu nunca tenha negado a escala de cinzas. Tenho consciência dela como um aidético tem consciência do vírus. Ele vive normalmente, e sabe que é assim que vai ser. Mas nunca recusa um bom coquetel que lhe traga as cores da vida. Ou recusa-se.
Da lentidão quase estática não cheguei nem na metade do caminho. O final não me interessa. Mas os meios que o justificam. O último admirará com lágrima nos olhos tudo que o passou por ele. Quanto ao primeiro, o do ritmo acelerado da peça, não terá o sabor de mastigar cada palavra pronunciada. Suas lembranças serão de cores misturadas de céu e de mato. E se darão conta de que o importante não é chegar, mas apenas ir.



terça-feira, 18 de maio de 2010

Se Eu Soubesse Falar de Eu

Não sou o leão com garras e presas, mas tenho o mesmo olhar predador. Ameaçador? Não sou esse lirismo louco de tempos modernos nem esse lirismo arcaico de tempos remotos. Não sei cantar e tenho a voz de uma menina de 12 anos no corpo de uma moça de 20. Mas continuo com a mesma luz infantil refratada no arco-íris da vida e seus momentos. O lilás suave de tom de pele encantada. O verde-floresta dos meus ares cheios de ar. E o som das águas rasas onde se põe o pé descalço para sentir a leve correnteza. Não tenho corpo de miss e nem nariz de francesa. Gosto de vinho branco com cereja e chocolate, mas de vez em quando tomo um pouco de cerveja. Eu bebia vinhos baratos no coreto da praça. Eu não tenho pele de seda, mas sei senti-la com cheiro de flores e maciez suave de pele de menina. Não sei escrever poesia, porque acho que isso não cabe a mim. Mas eu tento. Não sei escrever romances por que isso ultrapassa-me. Mas eu tento. Não sou flor-que-se-cheire, mas sei sentir o perfume delas quando elas se abrem e me deixam anestesiada. Um beijo. E se eu soubesse abraçar abraçaria todo mundo que necessita de um abraço, inclusive eu. Se eu soubesse abraçar pagaria minhas dívidas com abraços mais sinceros e menos desconfiança. Eu não sei cantar. Mas eu tento. E tenho voz de quem canta no chuveiro engolindo água. Canto dançando e descendo pelas escadas, imaginando um musical. E ninguém me vê. Ninguém me olha. Porque eu não sou dessas que se olham. Não tenho beleza universal e meu cabelo é sempre armado assim mesmo, com ar-de-juba-de-leão e meio despontado. Não sei cortar cabelo mas tasquei a tesoura na minha franja. Tenho espinhas e falo muito palavrão. Mas sei apreciar o valor de cada palavra doce, como 'pudim', por exemplo. Não tenho unhas feitas, nem vermelhas, nem de base, mas eu as corto e não as deixo sujas. Embora se elas fossem cumpridas e sujas eu teria de me aceitar com unhas compridas e sujas e isso seria talvez uma qualidade. Mas isso não acontece. Tomo muitos banhos e adoro perfumes. Sinto-os com uma elegância de tapete vermelho. Não uso salto alto nem me sinto confortável neles, embora eu ache maravilhoso. Pretendo um dia ter a loucura de usar um salto alto vermelho com um longo vestido. Isso será no dia que eu for pra Cannes. Mas eu também não sei fazer filmes. Actuar eu sei um pouco, mas não sei nada. Gosto do descompromisso com tudo o que soa 'obrigação'. Sinto-me arisca e até devo ser, no fundo. Não sou uma gacta-felina-de-capas-de-revistas, mas sou uma gacta-felina-que-toma-leite-e-ronrona-e-passa-as-costas-na-perna-do-dono. Sou alegre e sou triste. Geralmente sou muito densa e fico magoada se palavras duras em voz mansa me golpearem. Falo pouco de mim, mas escrevo coisas absurdas. Faço muitas perguntas. Talvez seja um dispositivo de defesa. Embora eu goste mesmo de ouvir as pessoas e acho que elas sempre estão dispostas a falar, mas elas nunca ouvem. Não há uma reciprocidade. E tenho paciência, mas atrasos me deixam nervosa e nunca sei se espero ou se vou embora. Costumo mandar mensagens e ligar. Mas telefonia hoje em dia nos quebra as pernas. Não sou muito (ou nada) adepta a política, mas acho que a Literatura tem seu papel em todos os campos da vida. Acredito em mim, mas tenho muita preguiça. Isso não é legal. E acho que posso mudar, se não me aceitasse desse jeito. Gosto muito de melancia. Bala de melancia, chiclete de melancia, suco de melancia, bebidas e afins e a própria melancia em si. Como até as sementes. São crocantes e têm um gosto suave. Gosto muito de Cheetos de cheddar em formato de lua. Aquele laranja forte. Bebo muita água o dia todo e consequentemente, vou muito ao banheiro. Passo a maior parte do tempo escutando música e pensando na minha vida. O ócio é muito bem cultuado. Não leio o quanto gostaria de ler, mas isso é uma questão de 'começar'. Sempre releio, afinal. Três ou quatro vezes o meu livro preferido. Lolita de Vladmir Nabokov. Humbert Humbert é um dos grandes caras que eu queria conhecer, mas no fundo teria medo de tanta ironia e mistério. Dolores Haze, vulgo Lolita, é uma ninfeta de 12 anos que, na minha idade, eu sendo amiga dela, acharia muito bonicta, mas enjoada. Mas bonicta. Não leio grandes coisas. Só o que me interessa. Pois ler o que não me interessa me pesa demais e isso me consome de uma maneira que nunca descobri. Tenho crises na tensão pré-menstrual e preciso muito comer doce. Choro muito e acho que não há solução para a vida. Só a morte. Mas cogitando que eu quero viver, a solução seria cotinuar vivendo na masmorra que é nosso coração e pensamento. Aceitando, afinal, tudo o destino nos prega, seja ele irônico ou bondoso, carcomido ou simpático. Sou chata, mas sorrio muito, sempre e morro de rir com coisas completamente infames. Sou sociável. Não sei falar em público. Acho que isso é uma trauma, no qual estou trabalhando muito. Enfrentar o medo sempre, na teoria. Na prática eu recuo e penso mil vezes se avanço ou se fico onde estou. Gaguejar, também. Mas são coisas que acontecem. Tenho uma paixão por muitas coisas mas uma moça me ocupa quase toda a cota. E isso são épocas. Tenho épocas. Tenho dores. Tenho olhos e tenho lágrimas e tenho saudade e sou uma criança. Sei dizer Eu te Amo, mas isso sempre me dilacera. Embora eu creia que sempre seremos dilacerados, de alguma maneira, então que seja do nosso próprio jeito torto e espinhoso. Doce e leve, muitas vezes. Gosto de mel e algodão-doce. Não sei me definir, mas tento.
E se pensar que não sou absolutmente nada disso. E não sou mesmo. Meus lados são sempre conforme a luz do sol. E uma hora me ilumina de um lado ao meio dia, e às quatro horas da tarde já sou iluminada por outro. Sou sempre eu nua e selvagem como costumo ser. Ou como não costumo ser. Sempre há uma desconstrução de tudo o que penso, pra poder pensar de novo. Sinto. E sentir tem me levado a lugares nunda dantes navegados. Nada. Apenas escrevo, achando que sou, afinal, minha própria sessão de psicanálise barata.

segunda-feira, 17 de maio de 2010

Garoa

Para André Campos

E um pouco de pão de queijo.
Minha mão de dezessete anos que embalou a daquele menino longe. Por onde você anda? Quem te faz chorar agora, que não mais minhas palavras? Quando você me falava que eu era uma pornógrafa sentimental, uma menina, uma adolescente escrevendo com o corpo e com a almae eu sorria porque eu só sabia escrever o que vinha. E agora já tenho vinte anos e nunca mais te vi. Agora já cresci e não sei se ainda continuo sendo uma pornógrafa sentimental, assim, sem você.
Não te mandei o CD com nossas músicas. Mas ainda tenho aquele que você me mandou num envelope amarelo acompanhado de uma carta num papel cor-de-rosa áspero. Jamais me esquecerei. Na época que eu passava o dia todo em casa, depois de voltar da escola, colocava meu chapéu roxo e grande e meu óculos de Narcisa e dançava na frente do espelho qualquer música-dançante-de-frente-do-espelho. A História de Lili Broun. Morcheeba cantando Rome Wasn't Built In A Day . Lembra? Que você insistia que era Morpheba. Não, André, é MorCheeba. E eu também te mandava Cardigans naquele clipe que ela, linda e loira, anda num conversível cantando Favorite Game. Eu só tinha dezessete anos e dançava na frente do espelho. Ainda danço e canto sozinha na rua pensando que estou num filme e que tem alguém me filmando. Mas são cenas da vida. São cenas que gravo comigo. Aquelas dos pinheiros. Te mandei um pouco deles na carta. Folhas secas, gravetos. Ah, meu menino sentimental, cadê você? Que saudade imensa de alguém para me corresponder. Alguém que eu nunca vi e me tocou tão profundo. O que você anda fazendo? Qual perfume você usa?
Andei vendo meus posts antigos. Queria saber o que eu escrevia com dezessete anos. Talvez as mesmas preocupações deslocadas para um espaço diferente. Serei eu sempre essa gosma de confusão? Um abraço de árvore. Um senhor passando. Muitas pessoas ainda passam por mim e ainda passo por muitas pessoas. Ainda fico? De tudo fica um pouco . Um pouco do meu medo e um pouco do teu asco. Dos gritos gagos.
Eu queria te dizer, mas cara a cara, que você ficou em mim de uma maneira muito marcante. E você passou. Passou comendo pão de queijo enquanto fico aqui na terra da garoa, cruzando a Av. Ipiranga com a São João. E se eu disser que as cruzei não faz muito tempo, você cairia de costas. Senti um comichão por dentro. Era de noite. São Paulo é linda à noite e você iria adorar. Me vista. Vem passar o Natal comigo. Depois me leva pra Minas, pra Ouro Preto pra eu conhecer esse barroco lindo que eu só vejo por fotografias, que eu só ouço falar nas aulas de Literatura. Eu cresci, meu menino. Mas a essência é a mesma. Continuo escrevendo cartas, continuo ouvindo as mesmas músicas de sempre e fazendo caretas no espelho. Alguma criança inocente insiste em se apossar de mim e fico imaginando qual será o mundo paralelo dos balões de gás hélio. E também o mundo paralelo do reflexo. Pensei muito nisso hoje. Porque sempre vejo as pessoas destroçadas do outro lado do vidro. O trem passando sobre elas e nada acontece. Elas pairam no ar e as vejo pelo reflexo. No trem, no metrô, no ônibus. Queria saber como eu sou nesse mundo paralelo. Qual é meu lado esquerdo? Meu coração bate no reflexo? E sempre vejo todo mundo passando bem rápido. Mas isso é muito raro. O trânsito aqui é infernal e às vezes consigo ver alguém cantando no ponto de ônibus, assim, empolgado com o fone de ouvido. Hoje vi uma menina que usava óculos, muito bonicta, e ela articulava os lábios muito lindamente. Pensei que ela poderia ser muito mais atraente se soltasse os cabelos e tirasse os óculos e sorrisse mais. Pensamentos momentâneos. Nunca mais a verei. São paixões-flashes que encontro todos os dias andando de ônibus nessa garoa desvairada.
Queria dizer que nunca me esqueci de você. Mesmo depois de anos. Mesmo agora eu tendo vinte e refletindo aquela adolescente rebelde cheia de coisas por dentro com um ar misterioso de quem sofre muito, mas quietinha, mas chorando no meu quarto roxo. Ainda choro nele. Ainda me descabelo ouvindo Eu te Amo do Chico, pensando em todos os amores que eu tive. Tudo o que não foi. Tudo o que foi e eu achei que não seria. Pregos da vida. Mas agora meu cabelo está mais comprido. E o seu?
Vem garoar comigo. Lembra que imaginávamos nós dois andando por São Paulo? Meu pornógrafo sentimental. Não sei porque, mas me lembro de você no Natal.
Não se esqueça de mim, onde quer que você esteja agora. Seja lá quais palavras você lê, de uma outra pornógrafa, talvez, não sei, nunca sabemos. Aquilo que está lá é nosso.

C.a.d.e.

E Acordou Comigo Olhando-a

Acordei meio dormindo. Dessas manhãs cinzas de outono, meio anos 80 de filme americano. Passei a mão nos olhos, levantei de repente. De repente lembrei-me que havia sonhado com ela. E acho que foi o sonho mais gostoso de nós duas juntas.
Foi tão rápido e demorado ao mesmo tempo. Eu havia chegado na minha casa e minha mãe me disse que havia uma moça me esperando no quarto. E eu sorri muito, porque eu no fundo sabia que era ela. E minha mãe falou que ela era uma moça linda, alta. E eu sorria feito criança e perguntava: Ela é bonicta, mãe? Ela é alta? E minha mãe orgulhosa, não sei porque, mas fiquei muito feliz por ela ter te achado linda e simpática. E falei: Pois é, mãe, sua filha é demais. E perguntei muitas coisas, como se aquela fosse a primeira vez que eu ia te ver. Pensei comigo, " ela está aqui, no meu quarto". E ai me dirigi sorridentissima até meu quarto, abri a porta bem devagar, analisando o ambiente afetado por sua presença, meu coração disparou. Te vi deitada na cama, de costas pra porta. Fui bem devagar pra não te acordar e te vi linda estirada na cama, sonolenta. E deitei bem na sua frente, pensando comigo que você acordaria ao meu lado, pela primeira vez. E você abriu os olhos, estava fingindo que estava dormindo e eu explodi em alegria e te abracei tanto tanto tanto que eu sentia meu corpo no seu e passava minhas mãos nas suas costas e o seu sorriso a sua voz de menina com uma flor. E eu lembro que a cena era toda em preto e branco. E de repente, como em sonhos, eu estava deitada em cima de você, cara a cara e você me falava que sentia muita saudade e eu ria de você, por ser boba, mas que eu também morro de saudade e que aperta muito aqui, eu te dizia. E te abraçava muito, te beijava, eu ouvia exactamente sua voz. Tão linda. Eu respirei aliviada porque eu pensei que nunca mais ia te deixar e você não ia nunca mais embora de mim.
Fiquei o dia todo perturbada. Pensei o dobro em você e olha que o normal já é muita coisa. Te desejo ardentemente de uma saudade que já nem tem dimensão. E foi esse mais um dia de outono. Mais um dia com você tão real, tão próximo. Mexe tanto comigo que meu coração se desloca pelo corpo todo. Meu sangue errou de veia e se perdeu.

terça-feira, 11 de maio de 2010

A Unha pela Janela

Olhei pelo olho mágico da porta. Ninguém. Talvez eu estivesse esperando uma visita sem aviso, uma pessoa qualquer, pra sentar comigo no chão do quarto vazio de onde se ouve o eco das vozes felinas, miadas, engasgadas. Talvez eu estivesse esperando o carteiro ou o síndico vindo reclamar das almofadas na janela. Quem sabe a clássica vizinha senhora pedindo um copo de açúcar. Sempre me perguntei porque tanto açucar. Um bolo? Café? Açucar mascavo, refinado, cristal? Pra sentar comigo no chão gelado, os pés descalços, rir à toa, tocar guitarra elétrica sem amplificador, fingindo ser acústica, qualquer canção clichê ' depois de tudo ainda ser feliz, mas já não há caminhos pra voltar' lá lá lá. E nem usar palheta porque me incomoda. Esperei que alguém batesse na porta. Esperando. Esperando. Esperando. (O Trem). Nunca fui ao encontro, nunca me dei por quem toma a iniciativa de alguma coisa. Isso em tudo. Lugares, pessoas, caneca de plástico, café com adoçante. Mas sempre vou sozinha ao cinema. Sempre compro um capuccino que inclusive, hoje, pedi para colocarem no copo, pois eu não haveria de levar a xícara na sala. Sempre tiro o sapato e jogo os pés pra cima, pra me sentir em casa. E sempre me sinto muito bem indo ao cinema sozinha. Sem esperar pelos outros que atrasam, sem ter que dar satisfações a ninguém a não ser a mim mesma que me atrasei 20 minutos para o filme. E depois me mimo, com as mãos no cabelo, um sorriso extasiante pra fugir da realidade. Me mimo pra não ter que me unhar, me dilacerar porque alguém mais bateu a porta na minha cara. Porque o universo-sempre-conspira-contra-mim-quando-acho-que-tudo-está-nos-eixos. Vida errante. E não me unhei, porque as unhas estavam curtas. Vim de cabeça baixa no ônibus soqueteando pelas ruas esburacadas. Anoitecia. Era frio, frio de outono paulista urbano. O dia foi frio, mas eu estava tão quente, esperançosa, os pés fervendo, calos nos dedos. Sorri feito criança. Tiffany & Co na avenida, e eu nem parei para me sentir uma bonequinha de luxo, porque não luxo, não-há-nada-mais-do-que-meras-cenas-cinematográficas. Mas havia um oco eco dentro, que berrava feito bezerro nascendo. Pensei em voltar lá e tomar meu café da manhã, comprar um anel barato, dar a mim mesma, ou a quem aparecer pela porta ou pular a minha janela. Que dia errante. O céu azul parecia gozar inteiramente de mim. Não quis falar com deus, achei bobagem. Não entendi o que ele-eu queremos de mim e caminhei caminhei caminhei com o pé pesado, a alma vazia, ninguém segurando minha mão. E eu queria estar sozinha pra poder ver as torres distorcidas pelas minhas lágrimas, as pessoas distorcidas por elas mesmas, a vida sempre absurda de me comer por dentro e por fora. Pão bolorento.
Mas sentei na cama, um ventinho entrando pela frestinha da janela que não fecha. Tirei a roupa. Fiquei de calcinha e sutien. O sapato com papel higiênico que eu havia colocado no banheiro do cinema para não machucar meus dedos - e funcionou. Me embrulhei no edredon frio sem ninguém, apenas eu, sem pensar em nada. Abri a janela, queria sentir o frio cortando meu corpo, os pêlos arrepiados, a vida passando sangrenta e doce por mim. O cortador em cima da escrivaninha. Achei que voltaria outra, mas uma outra mais madura, menos cortante, descrente. Sentei na cama e cortei as unhas dos meus pés. Cada uma jogada graciosamente pela janela. Cada aresta cortada, a mesma. Sempre a mesma.

sábado, 8 de maio de 2010

Da Alegria Mofada e Suja

Não se pode dizer que ela é dessas mulheres feias, mas bonicta ela não era. Pegava o ônibus de volta pra casa às 17h, ainda calor, ainda céu azul em São Paulo. Ela realmente não era bonicta, mas algo nela cheirava a sexo. Um odor invisível, bem fundo, como uma coisa proibida, muito proibida. Ela era feia, o cabelo começando a ensebar, escorrido, curto feito egípcia, mas de egípcia nada havia nela. Também não era feia de se dizer 'nossa, que cão-chupando-manga", mas repito, não era bonicta. Era estranha. Algo de asqueroso, um pouco de velho também, cheirando mofo. Uma coisa verde-cinza tomava conta do ar que ela respirava. Dessas mulheres que tem cara de ter nome algum. Sequer alguém a olhava. Mas ela sorria, meio brilhante por dentro. Cambaleando no ônibus lotado, o sol, o bafo urbano, ela sorria, e o sorriso, por mais brilhante que ainda fosse, ainda guardava um mofo. Erguia os braços para segurar no cano amarelo-sujo do ônibus. Não cairia. Mulher estranha.
Ela se sentia feia, sabia que era feia, olhava pros lados com um olhar vermelho de ódio universal. Sabia de tudo, do mofo, do ar velho que exalava. Figura marcante. Desceu do ônibus na rua estreita. Ainda não era noite. Aquele homem, o também feio, o também recusado, auto-recusado andava por ali. Um beco. Um grito. A pegou num soquete violento, arrastou pelo braço a pseudo egípcia, cortando seu corpo no pedregulho e nos cacos de vidro. Ela gritava. Ele tentava tapar sua boca com a mão. Arrancou a calça num rasgo. Ela gritava. Inútil. Não havia ninguém, não que não houvesse, mas justamente nessas horas o mundo some. Um calor ardido cortava ainda mais o corpo. Ela gemia de dor. Ele, bruto, peludo, coisa feia de se ver, e até de se falar, metia nela feito um canvalo selvagem-de-dias-de-caça. Mulher-feia, ele pensava. Ela parava o choro aos poucos, sabendo que não adiantaria, como desconsolada, esperando por alguma coisa, um milagre. O cavalo suado e cuspindo. Um gozo sujo, cru de carne podre, odor agora visível. Ele num relance parou, sorriu cafajeste, abotoou o cinto, não fechou o zíper, saiu meio assustado. Ela no chão, os olhos de vidros girando feito carrossel olhando o crepúsculo cinza. Ela ali, travada, doendo, ensanguentada como uma virgem na primeira noite com seu príncipe, mas o príncipe dela nunca veio, nunca houve nem o vilão que gostasse dela e a beijasse para despertá-la. Ela num ódio que crescia por dentro, cuspia ira de nervos. E ria alto feito uma vagabunda, uma tarada. Ela tinha gostado do estupro. Cachorra. Ela nunca antes tinha sentido um homem na vida, assim, rasgando-a por dentro. E não era porque ela não queria, mas por os outros não quiseram. E pela primeira vez ela gostou disso, e achou que o bruto homem a tinha achado bonicta, mesmo sabendo que não, no fundo. Mesmos abendo que ele só era um tarado que comeria até uma égua se visse pela frente, porém o único homem que havia encostado nela por própria vontade. Lembrou da cara engruvinhada dele. Mais assustada. Ela ria. Ela riu porque gostou de ser estuprada. O mofo continuava. Mas ela ria, o homem sumiu. Ela ainda caída no chão, feita mulher, mulher possuída, contente. Finalmente.

segunda-feira, 3 de maio de 2010

Carta ao Cheiro de Flor, com carinho.

Deixa eu te falar que eu to morrendo de saudade. Sinto uma coisa tão fraca em mim, um vazio existencial misturado com uma gosma roxa de coisas ruins. Às vezes me dá vontade de desistir de tudo, voltar pra minha terra, dormir na minha cama, comer a comida da minha mãe, sentir aquele ar puro todos os dias. Dá vontade de não crescer. Dá vontade de te ter pra mim e eu luto contra tudo com tudo que eu tenho de forças. Você me faz uma falta imensa. Como quando pego a rosa que você me deu e cheiro, meus olhos começam a lacrimejar e logo paro e faço outra coisa pra não cair na tristeza. Queria morar bem perto de você, queria ter você pra mim. E mais uma vez me pego tão impotente nessa vida. Tento fazer coisas pra me distrair, pra aguçar outros sentimentos, outros lados e, bem, às vezes consigo. Tua essência cravou em mim e pareço sempre te alimentar com coisas boas, essas delícias da vida, as pequenas, que te tornam grande aqui dentro, como aquelas trepadeiras, que tomam conta do muro todo e se deixar entram dentro da casa. E, Teresa, você parece até ter invadido o espelho. E aí mistura tudo nesse caldeirão de incertezas e medos. Me sinto fraca, vazia, tão criança sozinha nesse mundo-urbano-cinza-feio-fétido. Quero ouvir sua voz novamente, quero te abraçar, te beijar, te Amar, com todo meu Amor que tenho pra você, mesmo torto, mesmo longe. Te quero perto. Te quero comigo.
E caio sempre nessa mesma masmorra que me come. Tudo tão dolorido, as pessoas tão chatas, infernais, me dão medo. Tenho medo delas. Parecem sempre deixar o lado mau pra fora, sempre ativo, pra elas mesmas se protegerem. Enquanto ando sempre muito sensível a tudo e acabo me machucando nos espinhos delas. E daí quero minha cama, meus livros, minhas paredes, você, pra ver se deixo um pouco do teu cheiro de flores me curar. E daí preciso chorar pra ver se essas coisas espinhosas me deixam, mas nada adianta. Ainda vou ter um buraco no peito. Como hoje, que nem mesmo o dia lindo de outono me deixou alegre. O céu estava azulzinho bebê pomposo e o ar estava frio. Nada, eu consegui cair ensse poço.
Saudade saudade saudade saudade saudade saudade saudade sempre. Não te esqueço um dia se quer. E quando vejo alguma coisa nossa quero correr praí pra te contar. Digo, 'calma, passarinho, calma'. E tenho ódio de mim por dizer isso, mas é o que eu tinha pra hoje. Será que Teresa me esqueceu? Queria tanto que não me esquecesse. Será que ela ainda me espera? Queria tanto que sim. E se esquecer? Faço-a lembrar-me de novo, com todo carinho e beijinho sem ter fim.


De: Aquela mesma-velha-de-sempre-com-dor-no-peito

sábado, 1 de maio de 2010

Não Mexa no Acidentado

Se o telefone tocasse e fosse ele me dizendo que Laura viria me ver mesmo que não quisesse falar comigo, mesmo que só me olhasse pela porta com aquele olhar de você-vai-morrer-mas-eu-gosto-de-você-mesmo-estando-brigados, eu choraria muito. Não, não choraria, seguraria até o último segundo o choro e quando não desse mais cuspiria o fogo das minhas chagas sentimentais, berrando pra deus e o mundo e a vizinhança escutaria minhas blafemias, seus filhos da puta. Puro xingamento barato, gratuito, porque eu sabia que a culpa não passava de mim, Laura talve fosse culpada, mas quem não cometeria o mesmo erro no meu lugar, perguntei-me sozinho. Laura chegaria de mansinho, segurando a alça da bolsa numa mão, o cabelo meio despenteado e encostaria no batente da porta. Antes disso viria dirigindo num silêncio só dela, que era pra acalmar o espírito. Ela não falaria nada, quem sabe sozinha no carro, olhando pro retrovisor, xingando de leve o motorista de trás, burro, vai colar mesmo na traseira do meu carro? por um momento esqueceria de mim, por um momento... depois lembraria dos meus olhos cinzentos e olharia pro lado sem ver ninguém. Nada de mágoas, a vida é assim, já estava acostumada a andar sozinha. Laura. Viria ela me matar com seu silêncio? Mais morto de tédio e tempo que eu estava. O dia inteiro vendo revistas que falavam da mesma coisa só que de maneiras diferentes. Um creme pra rugas, descoberta de vida em outro planeta, será que tem água em Marte? o mais novo assassinato do momento. Uma curiosidade: 10 maneiras de mudar a energia da sua casa ( pra melhor). Ou pior, me perguntaria. Laura talvez seguisse uma ou duas dicas dessas, mas a energia dela já é tão boa que. Tão calma, tão silenciosa, ela mesma num mundo imenso criado por todo mundo que nem ela sabe quem é. E era isso, eu via o sol nascendo, lia alguma coisa, bebia leite puro, às vezes misturado com farinha, pra não descer tão branco assim e eu me sentir menos puro, com cota negativa de impureza. Ou pureza. Mas eu tenho certeza que ela não falaria absolutamente e me olharia com ar sereno. Porque, Laurinha? Fale comigo, sente-se aqui ao meu lado, me conte se o motorista de trás parou o carro e te xingou feito um macho improdutivo, na aparência, é claro, por dentro também. Machos-improdutivos tendem a descer do carro pra tirar satisfação, sei lá, pensei isso agora. E fiz cara de dúvida, se ela pudesse me ver. Ela sentou, coloquei a mão dela na minha, e ela me contou tudo, detalhe por detalhe... mas era tudo tão absurdo, um barulho infernal que não me deixava ouví-la. Pensei muito em como ela estaria vestida e fuçando a bolsa pra achar o celular e ligar pra alguém me ligar avisando que ela viria. Surpresa não? Achei que ela não gostasse, nunca a vi se surpreendendo, parecia que ela tinha um entendimento inato de tudo. era tudo aceitável pra ela, aparentemente. Meus olhos castanhos, não mais cinzas, olhando fixamente o telefone. ele não me ligaria mesmo, ela não viria, não vem, não vem, repeti comigo, que é pra não me decepcionar achando que ela viria. nesse momento ela poderia estar indo ao shopping, ou ainda discutindo com o macho-improdutivo, ou qualquer coisa, qualquer coisa que fosse não-me-ver-com-olhar-de-pena. E nem era por fugir de mim, porque ela não é dessas coisas, mas poxa, poxa, vida, Lira, Lira-Laura da minha luva, que sufoco, hein. Me traga um jornal decente, uma comida caseira e um quadro do Picasso pra eu olhar escutando o Bolero de Ravel imaginando meu fim-feliz-trágico-sozinho-nessa-caaaaaaama empoeirada do meu cheiro de poeira de pó contaminado, no ritmo do tambor. No carro ela dirigia fumando, meio raro, mas fumava. Corria, andava lento, o som baixo, às vezes desligado, ouvi seus pensamentos. Fechava o vidro. Que bafo aqui dentro, liga liga, ele, que não sei quem é, mas que falou talvez que pudesse vir, alguém, aleatório, cujo qual ela passou meu telefone e disse 'liga lá pra esse cara e conversa um pouco com ele, fala que um dia irei vê-lo' sem beijos no final, ma-le-má um Abraço, cara, se cuida. Vamos lá, to te esperando. Barulho surdo de cidade lá fora, aqui dentro barulho surdo do meu peito, um pouco de catarro, respiração às vezes difícil. Quero cores, quero o sol, Laura, por favor, me traga canetinha colorida, por favor, eu sei que você vem, desgraçada, venha, não precisa falar nada, não vou falar nada também e nos comunicaremos por olhares, pelo silêncio levando nossa saliva grossa, venha laura, não passe da porta, não dê um passo se quer a mais, mas olhe pra mim pra dormir em paz e parar de olhar esse telefone maldito, cretino, dissimulado, porque ele foi sua única palavera alheia, mas foi pra mim, ele não me liga mais, o seu amigo, não sei quem é ele, mesmo a voz sendo bonicta, saia logo desse carro, jogue esse cigarro no bueiro, ponha no punho um relógio de caneta Bic pra você saber que o tempo não passa e a gente para, como eu parei aqui, como você parou nesse semáforo verde.
O sol se pôs, o sinal fechou, ela parou mesmo. Ela não veio.

Duas Luvas no Meu Bolso

Sabemos apenas o que nos interessa. No tempo corrompido, nos ilustramos da maneira mais porca, de um jeito acanhado pra gritar e dormir sozinho.
Mas que as palavras não dizem sequer absolutamente nada quando quero dizer tudo.
Quando estou de braços quebrados ouvindo o silêncio da música não tocada, a orquestra não ouvida do dia anterior. Que fazer sentido é exactamente não ter sentido algum. Porque nunca saberemos o sentido exacto de alguma coisa, a luz exacta intacta dos olhares partidos.
Vivi, dormi, comi
tudo nesse silêncio meu
silêncio interno
não de aceitação do mundo
mas calmaria das coisas
respirar o tempo, envelhecer aos poucos pra alcançar a juventude
não a juventude desvairada, perdida, quem sabe rebelde, que tive
mas exactamente como foi. Não, não mudaria nada. Ouviria ainda as mesmas músicas que ouvi, os mesmos desenhos que desenhei e as mesmas palavras cuspidas.
No meu quarto todo escrito, guardo minha essência. Nas paredes corrompidas há uma linguagem só minha, e não há nada mais meu do que aquilo tudo. Meu culto, meu lírio doce comestível onde minha auto antropofagia me faz beber dos outros.
Sempre eu por mim
Sempre um galho de árvore incrivelmente bonicto, mesmo seco
porque a secura também tem a beleza
pois o que seria, então, do verde, do maduro, brotando?
do tempo, seu tempo pra tudo
há tempo pra nascer
pra brotar
pra amadurar
mas o tempo de secar
e passar do tempo
também seria exactamente isso
Mas que meu medo é vê-lo aos olhos vermelhos
e pensar que não tenho mais nada para ver
sua-vida-levou-uma-vida-para-você-saber-que-vivia sua vida precisou morrer para viver e o que é a morte senão a vida ao contrário? o que é uma rosa sem espinho?
mas que a beleza tem seus dois lados, que tudo sempre tem dois lados
e talvez não fosse nem o Bem e o Mal, mas o Bem Maior e o Bem Menor, ou o Mal Maior e o Mal Menor, com suas proporções fora de quota, fora de linha.
E quando nem você sabe porque tanta confusão te invade. Que você mesmo cria, porque ela não existia agora, mas passou a existir depois que a pensei.
Acho a Lei de Murphy a lei absolutamente cabível a tudo, que rege cada gota de orvalho ou bile, e que a Relatividade é totalmente relativa a ela, pois que é mais uma questão de próprio gosto e discussão do que o ônibus que você sempre precisa, passar no momento que você não precisava dele.
Resumiria num esquema porco de Ironia do Destino, ou como sempre, o Tempo por ele mesmo.
Porque o que deixarei é toda essa babaquice ignorável.