Se o telefone tocasse e fosse ele me dizendo que Laura viria me ver mesmo que não quisesse falar comigo, mesmo que só me olhasse pela porta com aquele olhar de você-vai-morrer-mas-eu-gosto-de-você-mesmo-estando-brigados, eu choraria muito. Não, não choraria, seguraria até o último segundo o choro e quando não desse mais cuspiria o fogo das minhas chagas sentimentais, berrando pra deus e o mundo e a vizinhança escutaria minhas blafemias, seus filhos da puta. Puro xingamento barato, gratuito, porque eu sabia que a culpa não passava de mim, Laura talve fosse culpada, mas quem não cometeria o mesmo erro no meu lugar, perguntei-me sozinho. Laura chegaria de mansinho, segurando a alça da bolsa numa mão, o cabelo meio despenteado e encostaria no batente da porta. Antes disso viria dirigindo num silêncio só dela, que era pra acalmar o espírito. Ela não falaria nada, quem sabe sozinha no carro, olhando pro retrovisor, xingando de leve o motorista de trás, burro, vai colar mesmo na traseira do meu carro? por um momento esqueceria de mim, por um momento... depois lembraria dos meus olhos cinzentos e olharia pro lado sem ver ninguém. Nada de mágoas, a vida é assim, já estava acostumada a andar sozinha. Laura. Viria ela me matar com seu silêncio? Mais morto de tédio e tempo que eu estava. O dia inteiro vendo revistas que falavam da mesma coisa só que de maneiras diferentes. Um creme pra rugas, descoberta de vida em outro planeta, será que tem água em Marte? o mais novo assassinato do momento. Uma curiosidade: 10 maneiras de mudar a energia da sua casa ( pra melhor). Ou pior, me perguntaria. Laura talvez seguisse uma ou duas dicas dessas, mas a energia dela já é tão boa que. Tão calma, tão silenciosa, ela mesma num mundo imenso criado por todo mundo que nem ela sabe quem é. E era isso, eu via o sol nascendo, lia alguma coisa, bebia leite puro, às vezes misturado com farinha, pra não descer tão branco assim e eu me sentir menos puro, com cota negativa de impureza. Ou pureza. Mas eu tenho certeza que ela não falaria absolutamente e me olharia com ar sereno. Porque, Laurinha? Fale comigo, sente-se aqui ao meu lado, me conte se o motorista de trás parou o carro e te xingou feito um macho improdutivo, na aparência, é claro, por dentro também. Machos-improdutivos tendem a descer do carro pra tirar satisfação, sei lá, pensei isso agora. E fiz cara de dúvida, se ela pudesse me ver. Ela sentou, coloquei a mão dela na minha, e ela me contou tudo, detalhe por detalhe... mas era tudo tão absurdo, um barulho infernal que não me deixava ouví-la. Pensei muito em como ela estaria vestida e fuçando a bolsa pra achar o celular e ligar pra alguém me ligar avisando que ela viria. Surpresa não? Achei que ela não gostasse, nunca a vi se surpreendendo, parecia que ela tinha um entendimento inato de tudo. era tudo aceitável pra ela, aparentemente. Meus olhos castanhos, não mais cinzas, olhando fixamente o telefone. ele não me ligaria mesmo, ela não viria, não vem, não vem, repeti comigo, que é pra não me decepcionar achando que ela viria. nesse momento ela poderia estar indo ao shopping, ou ainda discutindo com o macho-improdutivo, ou qualquer coisa, qualquer coisa que fosse não-me-ver-com-olhar-de-pena. E nem era por fugir de mim, porque ela não é dessas coisas, mas poxa, poxa, vida, Lira, Lira-Laura da minha luva, que sufoco, hein. Me traga um jornal decente, uma comida caseira e um quadro do Picasso pra eu olhar escutando o Bolero de Ravel imaginando meu fim-feliz-trágico-sozinho-nessa-caaaaaaama empoeirada do meu cheiro de poeira de pó contaminado, no ritmo do tambor. No carro ela dirigia fumando, meio raro, mas fumava. Corria, andava lento, o som baixo, às vezes desligado, ouvi seus pensamentos. Fechava o vidro. Que bafo aqui dentro, liga liga, ele, que não sei quem é, mas que falou talvez que pudesse vir, alguém, aleatório, cujo qual ela passou meu telefone e disse 'liga lá pra esse cara e conversa um pouco com ele, fala que um dia irei vê-lo' sem beijos no final, ma-le-má um Abraço, cara, se cuida. Vamos lá, to te esperando. Barulho surdo de cidade lá fora, aqui dentro barulho surdo do meu peito, um pouco de catarro, respiração às vezes difícil. Quero cores, quero o sol, Laura, por favor, me traga canetinha colorida, por favor, eu sei que você vem, desgraçada, venha, não precisa falar nada, não vou falar nada também e nos comunicaremos por olhares, pelo silêncio levando nossa saliva grossa, venha laura, não passe da porta, não dê um passo se quer a mais, mas olhe pra mim pra dormir em paz e parar de olhar esse telefone maldito, cretino, dissimulado, porque ele foi sua única palavera alheia, mas foi pra mim, ele não me liga mais, o seu amigo, não sei quem é ele, mesmo a voz sendo bonicta, saia logo desse carro, jogue esse cigarro no bueiro, ponha no punho um relógio de caneta Bic pra você saber que o tempo não passa e a gente para, como eu parei aqui, como você parou nesse semáforo verde.
O sol se pôs, o sinal fechou, ela parou mesmo. Ela não veio.
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