Olhei pelo olho mágico da porta. Ninguém. Talvez eu estivesse esperando uma visita sem aviso, uma pessoa qualquer, pra sentar comigo no chão do quarto vazio de onde se ouve o eco das vozes felinas, miadas, engasgadas. Talvez eu estivesse esperando o carteiro ou o síndico vindo reclamar das almofadas na janela. Quem sabe a clássica vizinha senhora pedindo um copo de açúcar. Sempre me perguntei porque tanto açucar. Um bolo? Café? Açucar mascavo, refinado, cristal? Pra sentar comigo no chão gelado, os pés descalços, rir à toa, tocar guitarra elétrica sem amplificador, fingindo ser acústica, qualquer canção clichê ' depois de tudo ainda ser feliz, mas já não há caminhos pra voltar' lá lá lá. E nem usar palheta porque me incomoda. Esperei que alguém batesse na porta. Esperando. Esperando. Esperando. (O Trem). Nunca fui ao encontro, nunca me dei por quem toma a iniciativa de alguma coisa. Isso em tudo. Lugares, pessoas, caneca de plástico, café com adoçante. Mas sempre vou sozinha ao cinema. Sempre compro um capuccino que inclusive, hoje, pedi para colocarem no copo, pois eu não haveria de levar a xícara na sala. Sempre tiro o sapato e jogo os pés pra cima, pra me sentir em casa. E sempre me sinto muito bem indo ao cinema sozinha. Sem esperar pelos outros que atrasam, sem ter que dar satisfações a ninguém a não ser a mim mesma que me atrasei 20 minutos para o filme. E depois me mimo, com as mãos no cabelo, um sorriso extasiante pra fugir da realidade. Me mimo pra não ter que me unhar, me dilacerar porque alguém mais bateu a porta na minha cara. Porque o universo-sempre-conspira-contra-mim-quando-acho-que-tudo-está-nos-eixos. Vida errante. E não me unhei, porque as unhas estavam curtas. Vim de cabeça baixa no ônibus soqueteando pelas ruas esburacadas. Anoitecia. Era frio, frio de outono paulista urbano. O dia foi frio, mas eu estava tão quente, esperançosa, os pés fervendo, calos nos dedos. Sorri feito criança. Tiffany & Co na avenida, e eu nem parei para me sentir uma bonequinha de luxo, porque não luxo, não-há-nada-mais-do-que-meras-cenas-cinematográficas. Mas havia um oco eco dentro, que berrava feito bezerro nascendo. Pensei em voltar lá e tomar meu café da manhã, comprar um anel barato, dar a mim mesma, ou a quem aparecer pela porta ou pular a minha janela. Que dia errante. O céu azul parecia gozar inteiramente de mim. Não quis falar com deus, achei bobagem. Não entendi o que ele-eu queremos de mim e caminhei caminhei caminhei com o pé pesado, a alma vazia, ninguém segurando minha mão. E eu queria estar sozinha pra poder ver as torres distorcidas pelas minhas lágrimas, as pessoas distorcidas por elas mesmas, a vida sempre absurda de me comer por dentro e por fora. Pão bolorento.
Mas sentei na cama, um ventinho entrando pela frestinha da janela que não fecha. Tirei a roupa. Fiquei de calcinha e sutien. O sapato com papel higiênico que eu havia colocado no banheiro do cinema para não machucar meus dedos - e funcionou. Me embrulhei no edredon frio sem ninguém, apenas eu, sem pensar em nada. Abri a janela, queria sentir o frio cortando meu corpo, os pêlos arrepiados, a vida passando sangrenta e doce por mim. O cortador em cima da escrivaninha. Achei que voltaria outra, mas uma outra mais madura, menos cortante, descrente. Sentei na cama e cortei as unhas dos meus pés. Cada uma jogada graciosamente pela janela. Cada aresta cortada, a mesma. Sempre a mesma.
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