Desci do ônibus. Uma chuva meio fraca, com gotas caindo da cabeça bem na minha boca. Era noite. Poucas outras pessoas desceram do ônibus. Atravessei a rua, peguei meu guarda-chuva do lado da mochila, olhei pra ele, quebrado, senti vergonha de abrir e o segurei na mão. Atrás ouvi alguém me chamando. Olhei meio desconfiada, uma menina perguntando se eu tinha guarda chuva, e sem me deixar responder me ofereceu carona no dela, depois olhou minha mão e viu que eu tinha um.
- Quebrado, eu disse, não quis abrir... e entrei debaixo do guarda-chuva dela.
- Você sempre dá carona no seu guarda-chuva? - perguntei
- Sim... acho desumano ver alguém do seu lado sem um e você tendo espaço no seu...
Quando ouvi "desumano" já comecei a gostar dela. Que misteriosa. Caminhamos pelo caminhozinho feio até sair pelo portãozinho.
- Você faz o que aqui?
- Odonto. - respondeu-me. Silêncio, alguns passos. E você?
- Letras.
Silêncio de novo. Senti um perfume meio doce que vinha dela, era gostoso, me lembrava alguém. Me lembrou de relance alguém que conhecera no cursinho, uma menina, Ana, que na verdade tinha um perfume muito diferente do dela, muito forte e muito doce.
- Você mora onde?
- Sabe aque...
- Pra esquerda ou pra direita?
- Hm, bem... pra... (pensando que lado é esquerda e que lado é direta...) direta, depois direita de novo... e você?
- Pra direita também, mas depois sigo pela esquerda.
E desenvolvi uma rápida tese que a maioria das pessoas iam praquele lado dela.
- Eu sempre vou sozinha por aquele caminho feio, mas estou acostumada.
Já não estava mais chovendo. Alguns pingos esporádicos pela rua, mas continuei debaixo do guarda-chuva, meio corcunda, meio sem graça. Nunca na vida peguei carona em um. Descemos as escadinhas chatas, quase ninguém na rua, barulhos de pingos. Não a vi direito, estava escuro com aquelas luzes laranjas que iluminam metade da gente e a outra metade, já negra por dentro, continua a dormir. Ela estava de toca da blusa que era azul marinho, tinha uma franja curta, pele clara, rosto fino e o perfume. Carregava seu material, talvez uma bolsa, talvez não e segurava o guarda-chuva. Tinha um sotaque diferente que eu diria ser baiano, mas também não era. Nunca ouvi antes.
- Você é de onde?
- Goiás. E você?
- Do interior. Interior de São Paulo.
Quase na bifurcação ainda senti de novo um cheiro mais nítido do seu perfume. Ela não tinha me olhado nos olhos, olhava pro chão, vendo o caminho molhado. Talvez estivesse com medo de mim, ou vergonha. Mas deveria ser especialista em caronas a pé.
- Estamos chegando, você vai pra onde?
- Pra cá, apontei com a mão pra direita, e o seu nome?
- Érica.
Érica, Érica, com C ou com K? pensei comigo.
-... e o seu?
- Cássia. Bem, muito obrigada.
- Boa noite.
- Boa noite
E seguimos por caminhos opostos, ambas sozinhas. Talvez um rapaz ia na minha frente, de guarda-chuva, mas mal chovia e outro alguém ainda na frente do rapaz da minha frente, mas já o havia perdido de vista. Olhei pro poste para ver a intensidade da chuva, era fraca mesmo. De carona, balbuciava. O perfume se diluiu com o quase frio e com a quase chuva. Olhei pra trás, de praxe, ela já tinha ido. Encontraria alguém para dar carona? Rua escura, noite escura. Não a reconhecerei novamente. E segui, o guarda-chuva na mão, olhando para o céu, pensando nalguém tão humano que te acolhe com um guarda-chuva, preto, como todos, depois de descer do ônibus, mais uma noite, mais uma vez essa garoa, segui, concluindo minha rápida tese que a maioria das pessoas iam praquele lado dela, e não era totalmente verdade.
Um comentário:
Hhahahahah, que ótimo!
Adorei o mistério...
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