sexta-feira, 9 de julho de 2010

Isqueiro Azul Diluído

Num tempo surreal do próprio tempo, nos perdemos e nos ganhamos nessa corrida, não armamentista, mas vital, mas passageira, mas qualquer coisa que evapore como o perfume do meu pescoço em narizes alheios que passam, silhuetas, e a natureza do vento tirando camada por camada da minha superfície.

Ela estava alterada pela cerveja que compramos de litro num bar qualquer ali na Augusta. Não gosto de cerveja, já deveria saber, mas tomei alguns goles. Enquanto eu bebia um, ela já estava no segundo, tão rápido ela engolia cada gota. Começou a me beijar enlouquecidamente que não parava mais. - Vai ficar ai sentada? - me perguntou, desafiando. Lerda como sou, pensei por 3 segundos e me toquei que ela queria dançar. - Ah, quer dançar? Vamos. Levantei e a puxei pela mão que deslizou num segundo para sua cintura. Seus braços para o alto, ela dançava colada em mim, meio bêbada, mais uma gota para a devassidão do seu corpo. Me beijava dançando e eu reluzindo, quase parada, sem acompanhar seu ritmo sensual. Que quenturão, essa meia luz quase escura, um porão quase abafado, aquela gente que eu nunca vi na vida, uns mocinhos sentados ali no sofá, outros na cadeira, mas ninguém nos olhava, era eu e ela dançando no meio, sem se importar com nada. Deslizando os corpos no chão deslizando na música, qualquer coisa alternativa que eu conhecia, mas era um voz feminina num ritmo dançante e isso já bastava para acender nosso fogo já aceso. Me colando num pilar qualquer, me beijava me beijava me beijava e eu a apertava contra meu corpo, não não não, não acreditava, que coisa, é essa, menina? O que que é isso? Nunca te vi assim.
Qualquer canto que encontrávamos ela me colava na parede, me beijava, e às vezes eu tentava sair para pegarum cigarro e ela me falava, sedenta ainda - Porque você não me põe na parede? - e eu ria, fazendo um charme, de " espera mais um pouco, porque não vamos ali com os outros? " e a pegava pela mão, como meninas comportadas. Vai, vamos fazer igual nos filmes, que você pega um cigarro e eu tiro do meu paletó o isqueiro para acende-lo, sem você pedir, mas porque eu sou muito rápida -  mas eu não tinha paletó, só um blazer sem bolso - fingi que tirei de dentro e ela acendeu o cigarro, soltou a fumaça, depois me deu. Guardei o isqueiro no meu bolso da calça jeans. Não estava frio, mas o vento leve arrepiava seu corpo quente. E me puxou de novo pra porta fechada de um bar e quase me queimou com o cigarro.
Naquele dia, e era um dia qualquer desses dias qualquer numa tarde tarde qualquer com céu azul e quente em pleno inverno, que eu nunca entendi, afinal, e a gente andou muito o dia todo, pra nos recompensarmos com um banho delicioso em qualquer banheiro pequeno desses apartamentos em algum lugar de São Paulo. Ah, São Paulo. O dia estava lindo. E passaria voando como qualquer outro. Passaria voando como passa o tempo quando queremos que ele passe lento. E passa lento quando queremos que passe rápido.
E as cenas se misturavam também nesse tempo diluído, entre uma e outra pessoa, que eu já não sabia mais quem era. Entre um dia e outro. Voando, passou voando. Quando dei por mim, estava dormindo em pé no ônibus de volta casa, de manhãzinha, as pessoas indo trabalhar e eu voltando da rua, o pé doendo por causa desse maldito All Star que pegou no meu dedo a noite toda, sem contar a longa, longuissima caminhada na madrugada, pela paulista inteira, falando sobre porcaria nenhuma e hotéis abertos com quartos baratos e bordéis pela América Latina ou bêbados de carro com som alto que, ao invés de dormirem, ficam zanzando pela cidade em busca de uma gatinha fácil.  Saldo: zero. Mas eu faturaria muitas e nem precisaria de um carro com som alto, seus merda. Mas eu não. Dissemos, alguém disse, eu disse, não sei mais quem disse. Mas agora era eu e ele só naquela imensidão de avenida que não acaba mais, morrendo de fome, os dois. E é certo que fomos quase o caminho todo falando de comida, e nada naquela joça estava aberto. - Queria uma coisa bem gordurosa agora. Hm, uma pizzza de calabresa - adoro calabresa - uma coxinha, feijoada - que tal? - feijoada. Dissertamos sobre a feijoada: uma feijoada bem suculenta, com uma farofinha assim, com laranja, uma couve bem refogada - pára, ai, meu estômago - puta que pariu, que delícia. - um arroz bem soltinho. Delirávamos.  E isso me fazia esquecer um pouco da insuportável dor no meu pé. Comida comida comida. - Bem, pelo menos já estamos quase chegando, já passamos o Masp. Nossa, como tem gente por aqui, não estava assim quando fomos.
Lá estavamos nós, a perna latejando de tanto andar, água água água e uma coxinha do bar da frente, per favore. Não quer cerveja. Cuspi água na cara de alguém. Não lembro exactamente que momento foi isso, já estava tudo evaporando, o tempo, as pessoas, os factos. Mas evaporando não de droga ou qualquer coisa química que eu tenha injetado, ou alguém, ou qualquer coisa que soe como psíquico, mas o tempo se evaporava num piscar de olhos. Muitos risos malígnos de minha parte. E ela veio com metade da garrafa querendo me molhar, não antes de eu, num movimento ágil, dar um tapa por baixo e fazer voar o copo com cerveja nela. Mais mais mais mais risos.  E ela puta vida. Tudo bem, segundos depois ela estaria fazendo massagem no meu pé e me jogando no sofá pra fazer massagem nas minhas costas. Mas você não sabe a marotisse que é remoer isso tudo deitada na cama, tentando relembrar os momentos, bocado por bocado. Aqui e ali. Alguém. Nunca fui senão tão babaca com uma roupa qualquer, meio amassada e usada do outro dia. Ou largada pela vida sem me importar se era água ou cerveja que jogavam em mim. A vida era outra coisa muito mais que isso. A vida é muito menos do que pensamos.
E de repente me vi debaixo do chuveiro. Mais de repente ainda acordando de tardezinha, com o sol já se pondo. E era sonho? Eu que queria lembrar de tudo, mas os dias se diluem no tempo e não sabemos com quantos anos estávamos ontem. Amanhã talvez eu esqueça, como passa, e que puta, agora, lembra do seu homem da noite? É sempre outro, é sempre ela. E fui embora.

Um comentário:

Anônimo disse...

Que loucura, gamei nesse!
Umas imagens chamosíssimas.
São Paulo amanhecendo e voltando pra casa de pé doendo. Uma nostalgia.
Que tempo são esses nossos?
Também me pergunto.

Explora mais esse lado ''young through the night'', que vc vira referência!
Muito gostoso de ler.
Beijo e não para, tá? =p