sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

Momentos a Fio

Aqueles que me tocaram a alma não conseguiram despertar meu corpo, e aqueles que me tocaram o corpo não conseguiram atingir a alma.

Um botão de camisa meio solto, precisando costurar. Há anos literalmente a fio, esquecido. A camisa que ele mais gostava. Agora coloco e me olho na frente do espelho, fico pequena dentro dela, enorme, branca, quase amarelada pelo tempo, encardida de mal lavagem.  Meu corpo era branco também, quase amarelado, confundindo com a camisa velha. Era um jeito de me sentir perto dele, havia ainda um cheiro muito vago do seu perfume. Embrulhei a camisa na mão e cheirava até a última linha, tentando resgatar alguma coisa como uma lembrança afincada ali, como alfinete. E vinham muitas, muitas boas lembranças, e logo iam para o mundo das lembranças de camisas brancas amareladas com um botão caindo.

Costurei o botão com linha verde, era a única que tinha na caixinha de costura da minha mãe. Quando pequena eu passava a linha na agulha pra minha avó que costurava a fronha da almofada. Foi com ela que aprendi a costurar e agradeço, vivo costurando coisinhas aparentemente inúteis a olhos lavados, mas não, são coisas agradáveis que só eu vejo e confesso, não fazem mesmo muito sentido. Uns dois ou três botões ainda costurei com linha verde, tinha um furo embaixo do braço que achei melhor deixar, a essas alturas mais vale um furo na camisa do que nas lembranças. Passei-a com ferro bem quente e tornei-a, mais uma vez, talvez a última, a vesti-la.
São coisas vagas que ficam remoendo bem no fundo de nossa mente, como um cheiro que lembra uma menina que estudou na quinta série com você, ou uma rua antiga da cidade onde passam lembranças de pessoas que te chamavam pra jogar bola e andar de bicicleta na infância. Ou ainda um toque de alguém que te arrepia a espinha e faz cócegas no pescoço. E logo passa, você se distrai com outra coisa, liga novamente o rádio e canta bem alto qualquer música nova das paradas. Como um momento atrás do outro, derradeiro. Como mais um dia que passa e virão mais, outros tantos mesmos, querendo ou não, de súbito, te impressionar, se você se deixar impressionar, ou não impressionar em nada, mesmo que seja uma borboleta. Nada a esperar, nem champagne, nem vinho frisante ou escova de cabelo com tufos de cabelo, mas incansavelmente, apenas um botão a ser costurado com linha verde e esquecido de novo, anos a fio, guardado no cabide.




 

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