De quando eu tinha dezessete anos e conversava comigo mesma, no meu único muquifo empoeirado: Este. Meu caro, há quanto tempo não me dirijo a você. Há quanto tempo não me dirijo a mim. Como eu cresci. Como eu mudei. Mudei mesmo? Ou será só esse cabelo despontado? Ou será só essa falha na sobrancelha? O mesmo rosto, os mesmos sorrisos de criança com doce. Ninguém rouba de mim. De repente me vejo mais mulher. Inútil. Me vejo como me vejo. Me incomodei um pouco. Onde está minha inocência? Ainda vejo beleza em tudo. Mas essa selvageria humana. Um coração concreto pesando no meio das pedras urbanas. Uma nova fase, um novo ciclo. O vínculo. Me desato de tantos nós e me ato em outros. Outro acto. Um monólogo. Queria escrever uma musiquinha pro mocinho-mais-lindo-do-mundo me cantar. E ele sabe que é ele, de barbinha e cabelo gostoso de amaciar. De violão e
songbook do Chico. Que saudade.
Ai, que saudade de mim que me deu. De quando eu ia sozinha aos pinheiros caminhar e recitar poemas que sei decor até hoje. Eram sempre os mesmos, todos os dias, com o sol se pondo. Os pinheiros sempre de braços abertos para mim, arreganhados. Eu e minha pipa, eu e meus amigos e piquenique. Que fartura. Cantava essa leveza pesada da vida, tão gostosa, tão dócil. Canto outras coisas agora. E me agarro a essa sobra do que os outros não querem, o belo, o inútil, é meu. É tudo meu. Inútil saber que não é.
Descubro minha voz. Canto pra mim mesma com mais afinação. Alto demais. "Mas minhas voz é de criança..." Sim, eu já liguei pra mim mesma só pra ouvir minha voz. Bocuda. Voz de criança mas fala besteira. Sempre falei, oras. Que mal há nisso? Pior se eu matasse passarinho. Pior ainda destruir o ninho.
Sempre descubro novas maneiras de ficar sozinha. E foi isso que sempre me fez ir pra frente. Ou pra trás. Eu nunca sei direito. Também não deve importar muito avançar ou recuar, ou ficar. Contanto que você veja o pôr-do-sol. Que me interessa se um recua enquanto outro pula duas casas? Já joguei banco imobiliário e a vida é mais ou menos desse jeito, só que sem olhar antes o Sorte ou Revés. Reluto muito, mas o mundo acaba por não se moldar a mim. Me diluo. Dissolvo. Nunca. Sou eu mais maleável nesse espinho de roseira. E o bagaço da laranja. Dou duro pra me camuflar.
E de dançar sozinha com aquela cartola lilás ouvindo Morcheeba? Muitos risos e caretas no espelho. Que delícia. Ai, menina, largue mão de ser daninha e vá estudar. E eu estudava. Largue mão de arte e vá tomar banho. E eu tomava. Largue mão, menina, de ser respondona. E eu não respondia. Tudo isso resultou nisto. Artes copistas literárias na parede, essa coisa gostosa introspectiva. Mas até que me acho simpática, não posso negar. Não posso negar, falo o que eu quiser nessa porcaria, é tudo meu. E você pare de ser mimada, e eu não parava e apanhava de vara de marmelo, de cinta, de fio de rádio, de chinelo, de tapa, de tudo. Ai, como doía. Casca de ferida. Ou abria a bocão a chorar ou ficava séria, firme e forte, engolindo o choro. Ruindade. Uma vez fiz meu pai chorar. Já fiz minha mãe chorar. Já me fiz chorar. Até o Lobinho, meu cachorrinho que me morreu atropelado por um infeliz, já devo ter feito chorar. T U D O bobagem. A gente chora porque sente, ué. Porque dói. E quer coisa mais bonicta que doer? Quero. Lá vai: Não, não tem. Tudo dói. Dói de lindo, dói de triste, dói de felicidade, dói de dor mesmo, de barriga ou cabeça, dor de parto, dor por dor, dor-prazer e a dor de amor? Clássico e clichê. Dói de saudade, dói de arder o frio, dói o sol por muito tempo.Dor de morte. E dor de dente? Mas é que a gente reclama de tudo. Que diabos eu estou falando? Eu já tenho 20 anos, não sei nada, mas sei muita coisa, já tive todas essas dores, e quem não teve? A criança da quarta série? Faz-me rir. Na quarta série eu tinha dor de ouvido. Aposto. Nem na piscina eu ia. Na oitava eu já deveria ter dor de pseudo-amor. E dor de barriga? Até hoje.
Hoje tenho vinte anos e me levo no berço eterno da placenta materna. Por opção. É difícil, acredite, é muito difícil crescer. Mas continuo me alargando. Hoje aprendi que: não se pode pisar na grama quando se tem plaquinha. E achei isso absurdo. O que vai doer a grama serem pisadas? Poupem-me.
Hoje tenho vinte anos e parece que nem nasci.
E que tudo acontece aos 17: Escrevi cartas (ridículas) de amor aos dezessete, amei aos 17; sofri demais; me formei aos 17, aos 17 estava coçando a mão pra fazer 18. Aos 18 eu queria voltar aos 15. Mas nem sempre. Meu primeiro namorado foi aos 17. E aos 17 eu comecei a escrever pra mim, pra você, meu muquifo.Viajei sozinha, para o desconhecido, para a desconhecida, aos 17. Aos 17 ainda chorei em posição fetal debaixo do chuveiro, Ah! meus dramas! Aos 17 eu já conhecia Chico Buarque e adorava Bolero de Ravel, Nina Simone e a Nona Sinfonia. Li Lolita aos 17. Reli aos 18. E tentei reler aos 19. Metade. Matava aula aos 17 e ficava na biblioteca. Conheci Delacroix e sua Órfã no Cemitério, acredite, aos 17. Prestei vestibular aos 17 e não passei. Pintei meu quarto, assisti Laranja Mecânica e li todas as peças do Jorge Andrade, aos 17, aquele da Marta e o Relógio. Mijei nas calças, fiz arroz, lavei o quintal, escrevi, asneiras, mas escrevi. E tudo tudo tudo. Mas eu já tinha vida. Sim, havia vida antes do 17. E como havia! Mas aos 17 eu comecei esse vínculo comigo mesma que se une mais e mais. Não é o vínculo teatral, mas é o vínculo visceral. A droga literária. Doses irremediáveis de palavras. Aos 17 eu escrevia sobre a surrealidade absurda e inútil do pensamento sobre um copo com água. Eu acho isso bárbaro. Bárbaro em todos os sentidos possíveis. E me acompanhar até aqui, até essa porta escura que é o amanhã e a penumbra de hoje, é como enfiar uma lanterna na janela de ontem e ver foco por foco cada chaga do meu corpo. Corpo novo. Mas já tão velho, em sentidos grandes. E tudo, abusivamente, não faz, talvez, sentido nenhum. Mas que eu cresço e preencho cada vez mais as páginas da minha tortuosa vida com letras vagas, aleatórias. Mas que nem eu sei o que é, mas é. É uma pétala que fica em cada página. Uma gota de sangue ( em cada poema), e não é de guerra. A engrenagem linfática de tudo o que é torto e não se arruma. Mas o que é reto nessa fajuta trajetória vital?
Aos 20 eu ainda continuo fazendo as mesmas enfadonhas coisas, mas é aí que está, com outros olhares. Talvez, mais sujos ou mais largos? Minha cara, quanta consciência há nisso tudo. Você que teve a vida ao deus-dará, sempre, desde pequena, meninota, quando andava de patinete pelo bairro. E caía e tropeçava, o joelho sangrava. Você, eu, tu, que exerce controle nenhum sobre teus pentelhos. Controle nenhum sobre teu controle de televisão remendado com durex e com pilha fraca. Você, bêbado aos 15, vomitando pelas praças de cidades interioranas, que se acha dono do mundo. E você, mamãe, e você, papai, que cospem a liberdade de seus filhos no ralo com cabelo. É inútil querer traçar um plano para eles. Acredite quando eu digo isso. Ele será coronel se o quiser padeiro, e padeiro se o quiser coronel. Cuida-os com amor e carinho, mas eles são do mundo. Aceite a perda. A conspiração do universo bate sempre à porta. Tive que aceitar que nem minha eu sou, que sou jogada aos quatro cantos do mundo, aos quatro ventos uivantes do pão amanhecido de cada dia.