sexta-feira, 23 de abril de 2010

No Tempo Selvagem de Nós Mesmos

Me dê a mão.

Um desamparo me tomou, quem sabe a chuva, molhando por dentro, umidece, cria mofo. Quem sabe ela me leva.
Ouvia-a caindo forte no teto do ônibus. A paisagem dividida entre o cinza e o verde mais velozes que meu piscar, adormecida, a boca amarga, a janela correndo, não fazia mais do que pensar no absurdo da vida.
O que é arte, afinal? Que amor é esse? Me perguntei tantas coisas. Não quis entristecer, mas alguma coisa me cutucava por dentro. Alguma coisa me incomodava muito. Era dia, mas demorava pra passar e ao mesmo tempo corria mais veloz ainda que aquela paisagem verde-cinza misturada, corria mais forte meu cérebro fundido, mas eu estava calma. E não estava triste.
São Paulo suja e cinza e bela. Da janela do ônibus vi todos os tipos de pessoa para chegar de um ponto a outro. Quis fotografar, mas há coisas que guardamos na memória. Nossas apenas. Fotografei então o rapaz apoiado no corrimão da ponte, o andarilho carregando um saco imenso passando na frente da loja de instrumentos, uma moça cor-de-rosa ao meu lado, o cobrador do ônibus. Pausa. Ele me chamou muito atenção, mas não das minhas melhores atenções, ele me pareceu muito arrogante, frio. Usava um cavanhaque não tão de mal gosto, uma camisa preta com risca de giz, não estava vestido, afinal, para cobrar as pessoas. Quando entrei no ônibus, ele estava lendo uma daquelas revistas de supermercado com preços do dia, mal me atendeu. Bem, aí então fiquei receosa, o caminho todo ele não mudou uma atitude que me fizesse mudar de ideia. Uma hora ele cochilou, uma senhora entrou e o cutucou, querendo pagar. Eu ri. Sorri muitas vezes. Mais pessoas: na Bela Cintra, executivos, secretárias, salto alto, um entregador do Habib's correndo com um papel na mão, mais pessoas no ônibus, carros carros carros lá fora, buzinas, dia cinza, dia cru, um mofo no ar, minha véspera de aniversário, um bocado imenso do meu dia rodando num ônibus demorado nas ruas caóticas da pauliceia. Diabos! Só queria chegar logo no meu berço, no meu canto lilás escrito com letras bastão, só queria lamber a parede do meu quarto e gritar sozinha em casa depois que meu irmão saísse. Alguma coisa ainda me incomodava muito, que eu me obrigava a pensar em outra asneira qualquer. Veio aí fotografias. Mas lembrei de pinturas, aquela, da Órfa no Cemitério, não sei, lembrei-a. Eternamente linda. Mais linda que a Monalisa, mais linda que a Julia Roberts, mais linda que... São Paulo em escala de cinza, cinzas.
Fui quietinha balançando.

Afinal o que é tudo isso? Que sentido faz eu pegar um ônibus para chegar em algum lugar e depois pegar outro para chegar em lugar nenhum e aqui estar ainda com perguntas, ainda querendo arranhar a parede do quarto, lamber o espelho, naricissismo inútil, cortar a roupa, depois deitar na cama e sorrir pro teto, pro universo, pros deuses.

Devorei um lanche que comprei na lanchonete da esquina. Pensar me deu fome. Minha bunda quadrada de tantos bancos me deu fome. Irritar-me atoa me deixou faminta.

Não contente, pisei no côco, quase mijei nas calças, mas encontrei tudo arrumado em casa. Por um lado é bom, por outro péssimo. Sempre sou eu quem desarruma tudo, jogo roupa, sapato, um livro ali, um copo lá, uma meia no chão. Sinto falta da minha mãe aqui, daquele ar de família jogado na casa, de dormir no sofá e ser carregada pelo meu pai até minha cama, zonza de sono, dopada. Falta de brigar com minha mãe, de ajudá-la a lavar o quintal, de deixá-la dormindo no sofá, de fazer ela acordar à noite pra abrir a porta pra mim quando esqueço a chave. Agora sobrou todo esse casarão pra mim e pro meu irmão que quase nunca vejo. Que não toco, que só brigo, que odeio e amo com tanta raiva ao mesmo tempo. Sobrou, como diria Caio ( o Abreu), só esse nó no peito.

Um silêncio absoluto. Nem os cachorros da rua latem, apenas o barulho do teclado aqui sendo digitado.

Esses dias à noite, morri de medo. Barulhos horríveis de caminhões, de carga pesada, entulho. Medo de me enfiar embaixo do edredon com todas as garras, mesmo no calor que fazia. Medo estranho, medo aleatório que anda me atacando de repente, em momentos mais aleatórios. Tentei pensar em coisas boas, mas não consegui. Me forcei a dormir logo, mas em vão. Uma batida forte no peito, um peso atmosférico que te engole. Adormeci.

Vontade de ficar quietinha num canto da casa, ouvir alguma coisa, mas ao mesmo tempo vontade de pular igual louca desvairada fugindo da cadeia. Vontade de dizer Eu te Amo. Acho lindo, essencial, quando é realmente verdadeiro. Da minha mãe, sempre. E sinto que uma onda de afeto vem junto com Eu te Amo. Me sinto mais pessoa, menos qualquer-coisa-que-vive-por-viver. Vontade de dizer Cuida um Pouco de Mim, ronronando igual gacto esquecido, passando a cabeça nas pernas do dono, depois indo deitar por entre travesseiros pomposos.

Carência inútil que bateu. Comer palavra, respirar palavra. Me perguntei o que era esse viver poesia? Que ninguém me entenda, afinal. É esse o foco. Não nos entendermos. Remoer essas perguntas irrespondíveis.

Me dê a verdade. Mesmo fantasiada.

Um comentário:

Anônimo disse...

Dá-lhe cinza.
Que foda, me senti em plena São Paulo me perguntado cansado tudo junto com você.
Saudades de um tempo que passou também, uns 20 anos atrás. Como se eu já tivesse com 40, e o dia de hoje fosse apenas um bonus do tempo para eu ver tudo isso de novo, mesmo que pela primeira vez. Mesmo que de fora, mesmo que quase vendo fotografias. Entende? È assim que eu entendi.

Não pare de escrever, por favor.
Ah, e de fotografar também. Mesmo que seja em cinza.

Um beijo, do seu leitor assíduo, que por dentro é mais ou menos assim igual, como você. E também delirou quando descobriu essas rádios escondidas no media player. rs

;*