escrevendo roteiros para filmes do Almodôvar
se passa na minha casa
estou sentada no chão do meu quarto encostada na parede vermelha com uma pintura do Toulouse Lautrec e uma do Picasso, estou de frente pra janela e entra uma luz de fim de tarde cinza e nublada mas ainda um sol tímido querendo se despontar, estou no computador fazendo qualquer coisa, está tocando Justice.
Alguém abre a porta da sala e penso ser ou a Arielli ou a Thaís. Olho de soslaio, ninguém apareceu ainda, volto a olhar o pc e de repente uma figura na porta, com se tivesse aparecido de repente, é a Leila em sua blusinha branca tão bonicta e uma calça jeans e um tênis de neve. Ela pára me olha e se ajoelha no chão em prantos e me abraça. Nos abraçamos então meio sem jeito, ela quente e suada, encosto o meu nariz no seu pescoço, quente e suado, mas está gostoso e aconchegante, ela chora chora chora, enquanto rola um eletrônico moderno do Justice. Ela chora mais.
- não consigo, bi, não consigo esquecer o Dan
e chora mais chora mais
eu fico quieta, silenciosa, ouvindo suas lágrimas, eu nunca tinha visto ela desse jeito, quebrada pelo seu próprio coração, ah, o amor, ah a paixão, diria Drummond:
por que amou?
por que amou se sabia
proibido passear sentimentos
ternos e desesperados
até hoje me pergunto isso. mas amamos, continuamos na amargura imensa de amar e desamar (talvez).
mas ela chorava, eu quieta.
- eu preciso ir logo pegar o ônibus das 9. nem sei se vai dar tempo..
era um monólogo imenso pela sala. ela arrumava as coisas dela que estavam em casa, chorando, ela e as coisas, enquanto eu via algumas partes do seu corpo passando pela moldura da porta, suas pernas agachadas, seus pés desesperados, seu choro soluçando.
- não dá mais, não sei o que fazer, ele não gosta mais de mim, ele me disse isso, e eu? porque eu faço isso comigo mesma? talvez eu seja masoquista, não sei. queria saber.
as palavras brotavam da boca dela em momentos exactos. tudo ali era exacto: as falas numa entonação perfeita, o movimento do corpo, os olhos, a luz do fim de tarde entrando pela janela escurecendo, a luz do computador, a luz da sala, a música ainda rolando, tudo se encaixou perfeitamente. meu corpo estava gelado. e eu ainda quieta, suspirando, tentando não sentir a dor dela, mas era impossível. tentei pensar em outra coisa, entrar na música, mas não tinha como, era um espetáculo ao vivo e único, nunca mais, nunca mais ninguém vai ver isso... infelizmente.
e então, depois do monólogo da sala que eu não me lembro, ela entrou no quarto, esbaforida, triste, sentou no canto da cama, acolheu seu cotovelo no joelho e segurou o rosto com as mãos, reparem na luz da janela, era sensacional, e então ela começava de novo:
- até quando isso, bi? não sei mais o que fazer, vou trocar o chip do celular, não vou mais atender. ele só brinca comigo. vê se pode, de manhã me liga falando que me ama que sou a mulher da vida dele que ele não quer nunca me perder, tudo bem, eu atendi sem querer o telefone, era de madrugada, ele me disse isso, depois de noite tudo ao contrário, como se fosse outra pessoa, disse que não me queria mais...
- ai, bi. - finalmente falei alguma coisa, entalada na garganta
ela chorava na beirada da cama.
- leila, a gente já conversou sobre isso..
e então saia desesperada pra sala
- preciso ir logo, será que dá tempo de pegar o ônibus das 9 pra tatuí? senão só às 11. já sei, vou agora pra passar numa casa de câmbio, até agora não troquei esse dinheiro, você sabe onde tem uma casa de câmbio?
- nem faço ideia
- eu queria ir amanhã cedo pra Capivari.
e então começava de novo o monólogo e eu falava
- leila, já conversamos sobre isso.
- conversamos o que, bi?
- sobre isso, sobre você escolher ficar mal com isso.
- mas como, bi? como? não escolho me apaixonar de novo pela mesma pessoa.
- mas você escolhe, sabendo da situação, ficar mal ou não.. tá tá, eu sei que é foda, mas já é um grande passo
- não consigo, não consigo, você fala como se fosse muito fácil
- eu sei que não, mas...
oh, ninguém nunca me entendeu, na verdade de tudo. lá no fundo. talvez 1 ou 2 pessoas tenham captado toda minha filosofia de vida e amores e como sobreviver a cada dia e reinventar nossa própria existência a cada minuto. eu só tento me desconstruir e construir de novo enquanto as pessoas só tentam reconstruir sem quebrar nada, mas quando dão por si já estão em cacos quebrados e nada era do que elas pensavam. e nunca vai ser até o momento que você tiver a consciência que sua felicidade só depende de você e não de outra pessoa. as vidas se cruzam e os olhares e os amores e os desejos e se descruzam na mesma intensidade. mas ninguém nunca me entendeu, eu sei, eu sinto, é o modo como as pessoas me olham e pensam: oh, como ela é inocente, se tivesse a cabeça na realidade, mas é cheia desses papos idiotas e filosofia barata e essa porcaria toda aí. é assim, mas, o que fazer? eu tento dizer, cada um tem seu caminho traçado por si só. alguns descobrem outras maneiras. eu continuava imaginando as câmeras naquela cena, onde estariam? porque foi permitido só a mim presenciar isso? Leila.
- você viu minha bota nova?
- vi, maneraça.
- é bota de neve, impermeável. tomei chuva com ela e meu pé está seco.
- uau. quanto você pagou?
- 290 reais
- bem, pelo menos você vai ter o pé quente e seco
então ela voltava no assunto. e eu voltava a falar.
- leila, já falamos sobre isso. ninguém nunca morreu de amor
- ah não?
- não.
- e as pessoas que se matam por amor?
- burras. se matam porque querem, não por amor.
- claro que não, e depressão, bi? você acha que é porque a pessoa quer?
- eu sei que é foda, mas poderíamos nos esforçar e tomar consciência disso.
- as pessoas se matam por amor
- enfim
- enfim, não sou dessas que se matam, não vou me jogar da janela
- menos mal
daqui a pouco silêncio. ela ia voltava, sala, meu quarto, cozinha. o celular tocou... era o Dan
ela ficou encostada na parede do lado da geladeira falando com ele, já tinha parado de chorar, mas a dor pesava, eu podia sentir na voz. porque ela ainda atendia o telefone? ou alimentava isso? porque não era sincera com ele ou com ela mesma?
coloquei água na panela para fazer um miojo. não ouvia mais o que eles falavam. começou a tocar outra coisa com saxofone então eu fingia que tocava saxofone no ar. ela me ignorava, ela acha que zombo a cara dela por tudo isso, mas no fundo estou brincando com nós mesmos e nosso luxo de se dar ao luxo de chorar por amor/paixão. eu me dou ao luxo de chorar por tudo e ficar muito mal, só pra depois tentar ver tudo de novo com outros olhos, no final, não é o fim do mundo, nem de nossas vidas.
comi o miojo delicioso, um gênio quem inventou o miojo, não pelos seus fins, me falaram uma vez que o miojo foi inventado na primeira ou segunda guerra mundial e era o que os soldados comiam, por ser fácil de preparar. guerra ao idiotas.
depois não me lembro muito o que aconteceu. ela atendia e desligava o telefone a todo momento. brigava com ele
- porque você desligou na minha cara?
- eu não desliguei na sua cara - imagino que ele tenha respondido isso
- desligou sim, Dan, desligou pra falar tchau pro seu amigo
abri a geladeira e tomei gole de suco de pêssego com soja de caixinha. olhei e tinha dois tomates vermelhos na geladeira. coloquei os dois tomates bem vermelhos em cima do filtro de barro. como eles são lindos e vermelhos. como eles ficam mais lindos em primeiro plano e os azulejos azul e branco da cozinha ficam perfeitos de fundo. fotografei os tomates.depois ela apareceu na minha porta me dando amêndoas num saquinho rosa bebê delicado.
- nossa, essas amêndoas são divinas.
- boas, neh? são caras
- muito boas, hmmmm - respondi com a boca cheia de amêndoas
então ela arrumou as coisas.
- você vai pra Tatuí?
- não, vou encontrar o Dan.
olhei com uma cara de 'porra, tudo isso e você vai encontrar com ele..." tudo bem, você sabe o que faz. pensei.
então nos despedidos com abraços longos e fortes. o pescoço dela continuava quente, mas já não estava suado.
- boa viagem. não esquece meus chocolates suíços.
- não vou esquecer. se cuida, bi.
- te amo
- te amo
e nos abraçamos mais. então ela foi embora sem trancar a porta.
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Liberdade e Responsabilidade (Jean-Paul Sartre)
"(...) o homem, estando condenado a ser livre, carrega nos ombros o peso do mundo inteiro: é responsável pelo mundo e por si mesmo enquanto maneira de ser. Tomamos a palavra “responsabilidade” em seu sentido corriqueiro de “consciência (de) ser o autor incontestável de um acontecimento ou de um objeto”. (...)
Portanto, é insensato pensar em queixar-se, pois nada alheio determinou aquilo que sentimos, vivemos ou somos. Por outro lado, tal responsabilidade absoluta não é resignação: é simples reivindicação lógica das conseqüências da nossa liberdade. O que acontece comigo, acontece por mim, e eu não poderia me deixar afetar por isso, nem me revoltar, nem me resignar. (...)
Sou abandonado no mundo (...) no sentido de que me deparo subitamente sozinho e sem ajuda, comprometido em um mundo pelo qual sou inteiramente responsável, sem poder, por mais que tente, livrar-me um instante sequer desta responsabilidade, pois sou responsável até mesmo pelo meu próprio desejo de livrar-me das responsabilidades (...)".
Dê uma olhada no meu último post! Música com flautinha mágica!
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