terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Olha essa sua cara feia, esse cabelo sujo, essa falta de porte, seu desleixo, essas camisas amarrotadas, seus ombros caídos.
E esse desânimo, essa angústia, uma esperança vã, o dia nublado mas o sol ainda se despontando.
pelo menos ninguém me incomoda.
Posso passar o dia todo sem falar com ninguém. Apenas o necessário. Posso permanecer em silêncio por muito tempo e ainda pensar em nada. Pensar em nada foi o que eu tenho feito, quando me dou conta penso: nossa, eu não estava pensando em nada. Que coisa louca.
o que fazemos é guardar lembranças em caixas lacradas no canto do quarto. intocáveis. proibido passear sentimentos
nada muito a ser feito. consumimos algumas coisas, agora, por exemplo, olho na minha cômoda:
perfume importado que ganhei da minha tia, talco para os pés, pente, carteira, cartões, creme, espelho, livros, tênis, roupas lavadas, roupas sujas, sabão em pó, álcool, canetas, chinelo, tapete, luminária, pipoca, chocolate, suco em pó, máscaras, toalhas, calcinhas, cuecas, meias, lençóis, óculos de sol, celular, créditos, internet, cinema, sorvete, pizza, leite, cerveja, vinho, carne, vegetais, frutas, miojo, eletricidade, gás, sacolas, banho, música, descarga, pasta de dente, fio dental, angústia, amor, saudade, quilos e quilos de indiferença, desumanidade, poder, absorventes, jantares, sabonetes, conhecimento, amizades, crueldade, pessoas.
engolimos tudo numa ânsia de sermos sempre outra coisa. nem uma coisa. nem outra. estarmos sempre em movimento, mas isso um dia pára. é aquele dia que a gente vomita a desgraça de sermos nós mesmos por alguns minutos, e vomitamos o outro e tudo de mal que nos foi feito e a nossa graça do dia a dia, nosso silêncio estúpido enquanto o sol nasce e se põe e sua luz me arde a pele nesse calor insuportável.
essa luz que me parte
essa maldita luz, esse feixe de luz que nunca vai sumir, mas penetrar fundo pelos poros do meu rosto, do meu corpo, dos meus olhos e eu vou chorar lágrimas de cachorro sem dono intolerável nas portas de comércios, bares, padarias, máquina de assar frango. intolerável com seu rabo já sem metade da pele, queimado, uma orelha cortada, uma pata mancando, mas persiste, convicto, carinhoso e cruel por ser carinhoso e carinhoso por serem cruel.
meu amigo sem amigo nenhum, nem eu mesma em minha condição posso ser sua amiga, porque não temos nada além de nós mesmos e nos agarramos fundo e rolamos restaurante a dentro, sarnentos, mofados, você, pela crueldade humana eu, pela esperança vã.
- com licença, moça, não pode entrar com cachorro aqui, ou ainda
- com licença, cachorro, mas moças assim não entram

ou nada, nenhuma palavra.
fui esquecida. fomos esquecidos. o mundo parece dar mil voltas, mas eu o sinto parado, estático, inerte, meu coração bate lento e depois acelera e não é a mesma batida dos outros corações porque já não estamos em sintonia. nada. é um caos desconexo. perdemos nossa percepção. cão.
enquanto escrevo, continuo esquecida. me esqueço em mim mesma no meio do pasto e as nuvens me cobrem.
pego o papel higiênico para assoar o nariz. já cansei de engolir essa gosma. já faz tempo que estou resfriada, essa merda não sara nunca.
pelo menos um vento leve arrasta a cortina e um pouco de luz entra.
já não importa como estou, o que faço, com quem saio, com quem não saio, nada mesmo, nada importa. eu reescreveria o tabacaria todo e diria que saiu do meu mais profundo desgosto, toda minha filosofia num poema. mas nem isso eu conseguiria. meus recursos são poucos, se é que tenho algum recurso de vida.
saio do restaurante tão imunda quanto havia entrado. as pessoas limpas, impecáveis em seus rostos puros, limpos, oxigenados.
caminho lento pela rua, barulho nenhum, parece que vivo num mundo paralelo.




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