Imagine que estou gritando. MUITO
Mas é um grito muito forte. Grito de desespero. Grito de angústia, tédio, enjoo. UM GRITO IMENSO, que explode tímpanos. Um grito parado, como n' O Grito, de Munch. Um Grito ensurdecedor. Um grito parado. Grito de liberdade. Desses de subir no morro e erguer o braço, estufar o peito e berrar pro mundo todo.
Um grito de agonia.
E continuo gritando, em silêncio, aqui nessa sala escura, todo mundo dormindo e eu sozinha, falando com meu espírito. Devaneios.
Não é loucura, mas chega a ser DENSO DEMAIS. O som sai como uma gosma nojenta e roxa.
E continuo gritando
por estradas
por caminhos cotidianos
porque é preciso continuar
é preciso por um pé após o outro
e andar
e andar
e eu quero andar tanto
mas canso logo, fatigada, meus olhos semi-abertos
meus pés engruvinhados de água
porque chove tanto
lá fora, aqui dentro, no meu corpo todo
seco, oco
Eu não vejo mais as coisas porque uma nuvem negrissima me tapa tudo
e me leva com ela
porque eu não consigo ir pra frente
estou parada, no ponto de onibus e o onibus não chega nunca
as pessoas passam por entre mim
e eu fico
eu fico
incansavelmente eu fico
eu espero não sei o quê
e finjo conversar com todo mundo
finjo alguma coisa
ou sinto mesmo, de verdade
porque sentir é algo tão surreal
e eu já senti tanto nessa vida
perdas, alegrias, amores, pessoas, devaneios
músicas, eu, letras, cartas, tudo
e única coisa que me vem agora, ( eu continuo gritando)
é essa saudade imensa
essa amargura
essa solidão e vontade de voltar pra casa, pra minha mãe
pros meus amigos, pra mim, antiga, criança, bebê, selvagem
por um segundo ( gritando) me doeu novamente crescer
ter crescido
vindo embora pra longe
Peço o colo de minha mãe
Peço o colo de alguém qualquer que passe pela rua
mas ninguém me escuta
e eu continuo andando
continuo gritando alto dentro de mim
e isso me incomoda,
Estou farta.
Mas o grito ainda não cessou
o grito é constante
imenso
grande
e GRANDE
E passa por cada buraquinho
por cada buraquinho que eu deixei aberto em mim
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