parece que não me sou
parece uma angústia profunda desconhecida
parece um vazio imenso despejado sobre mim
parece que o buraco do mundo se abriu e me engoliu
sem piedade sem sombra de dúvidas que era a mim mesma que ele queria
então respiro fundo
coço os olhos respiro fundo de novo
tenho que pegar o ar tenho que pegar o ar
é difícil tenho que abrir bem os pulmões
expando as costas largas
me reviro com o pescoço me tranco sozinha
preguei-me na parede e me descubro nua
de repente como uma coisa natural por fora
mas dentro está tudo revestido de uma lama
e de costelas flutuando
sinto uma ponta aguda quase saindo do peito
me dói profundamente
lamento minha existência como se lamenta
uma pomba esmagada por um carro
está apodrecendo no meio do asfalto
as pessoas passam e pisam
os carros a desmembram mais
a luz do sol a esquece jogada e
não a toca
lamento a existência do mundo
esqueço como é meu rosto
olho-me e me assusto
parece tão diferente
não parece ser eu
continuo caindo no buraco do mundo
falhei tropecei fui infame pedinte melódica não quis nada quando eu queria tudo
enganei-me
eu queria o amor e não me deram
eu queria mais amor e não me dei
não pedi nada além
esperneei um pouco chorei pedi implorei
mas nada
como se eu fosse um poço vazio
cheio de bitucas de cigarros
daí me revirei me contorci acordei com cara de monstro
eu diria que fui picada por uma abelha e que tenho alergia
mas era só choro
era puramente um amargo pus de bile sendo vomitada
(quando se bebe muito)
continuavam jogando as bitucas
- não quero bitucas, quero carinho
- eu já disse que não quero isso, eu quero... quero
suspirando já chorando de cabeça baixa descrente
e daí não quis mais nada
engoli todo o buraco negro
engoli o poço
os restos de cigarros
a poeira de terra cheia de resíduos
de ossos e peles e sentimentos guardados
engoli minha nudez
as costelas os ossos
engoli o ar a respiração
as raízes e minhocas e vermes
e minhas lamentações
e todos os amores
e engoli também todo o passado
as promessas
os sonhos engoli o futuro engoli
todos os beijos e abraços
engoli as nuvens os pores do sol
todas as árvores secas
engoli todas as palavras pronunciadas
todas as lágrimas engoli
engoli o tempo e sua ironia
engoli o sarcasmo a sorte e a falta dela
engoli os deuses pagãos todos eles
engoli a borboleta
engoli o pássaro
todos os pássaros todas as cores
engoli todos os sorrisos que me doíam
toda a alegria e tristeza de nascer
e de morrer
eu engoli a morte e sua face oculta
engoli-me
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