quinta-feira, 25 de junho de 2009

Poeira

- São Paulo é meio solitária
- Na minha rua não.

... e ela me disse isso, sem entender o que eu queria dizer. Tanta gente e ao mesmo tempo ninguém. Parece-me um amontoado de almas que vagam pra lá e pra cá, e se encostam em você, é como se passassem pelo seu corpo, sem sentir, sem te ver. Mas eu as vejo, vejo sim, e quanto mais as vejo mais me sinto alheia.

Não resisti. Lutei contra mim mesma para não expressar nenhum sentimento e esquecer o que quer que tenha acontecido. Mas não aguentei. Amanheceu chovendo e dias assim parecem que cravam uma faca no meu coraçãozinho ardente e ficam cutucando para ver se sai sangue ou água. Dias chuvosos são tristes sem você... e é inverno. Passei os últimos dias do outono sozinha, mas já parecia ser uma estação indefinida, misturado ao meu último dia. Chover era a última coisa que eu queria.
Meus olhos doíam tanto que eu mal conseguia fechá-los. Parecia que eu tinha tomado uma cachoeira de água que vasavam por cada poro do meu corpo. Paulista inteira sentiu o gosto do meu soro. Não havia maneira, lugar, ideia, pessoa ou céu azul que me fizesse crer em um dia feliz.
Andei tanto... nem meus pés cansavam mais que minha dor. Minha cabeça parecia que ia explodir, aí eu me acalmava por breves segundos, e depois uma bigorna caía sobre mim. Já não acho mais nada de nada. Tudo corre absurdo e muito, muito muito surreal. Queria sair do meu corpo, viajar bem longe, para um lugar que não houvesse pisado seus pés, nem tivesse cheiro. Mas todo lugar que eu vou tem um pedaço seu. Como aquele poema de Drummond, Resíduo -" de tudo fica um pouco, do meu medo, do teu asco, dos gritos gagos..."

"...se tudo fica um pouco, mas porque não ficaria um pouco de mim?"

Eu poderia ir à França, e lá teria um pedaço de você. E tudo nessas duas cidades que vivemos parecem te ter inteira, sem nenhum pedaço faltando. Cada paralelepípedo dessas ruas antigas tem uma lembrança de seus pés... meus lugares preferidos, a praça, o sorvete, meus amigos, meu quarto, gasolina, frango, cartas, metro, universidade, augusta, paulista, masp, frio, chuva, músicas e até meu muquifo empoeirado, e mais zilhões de coisas que não me deixam escapar, nem meus sonhos. Absurdamente uma prisão.
Dói tanto. A saudade é tanta.

" disseste que se tua voz
tivesse força igual
à imensa dor que sentes,
teu grito acordaria
não só a tua casa
mas a vizinhança inteira"
E isso me resumiu, logo que ouvi essa música. Como uma dor imensa, um sentimento indefinido.
Já disse tantas vezes que acho que nunca superei perder as pessoas, e essa pequenez, essa ironia do destino me deixa me sentindo como uma ameba esmagada. O que somos, afinal? Não podemos controlar nem nossa vida. Somos pequenos. Somos algo jogado no vento, nem podemos nos medir. Somos livres... até que ponto? Até que ponto, meu Deus, não somos nós mesmos? não somos nós que decidimos se vamos beber água ou rabiscar um sol.
Pensei tanta coisa, sabe. Relembrei outras. Era tudo tão branco. Tudo parecia dar certo, caminhando como nunca antes minha vida havia ido. Como nunca antes minha vida havia dado certo com alguém. E meu coração escorreu pelo ralo.
Lembra daquele poema de Antonio Gonzaga? A Lira 77 de Marília de Dirceu, que ele já está delirando, sem poder nunca mais tê-la? Sinto-me assim, exilada, numa prisão fria e cinza e... chovendo. E você me disse uma vez que gostava tanto de chuva e eu te disse também que gostava bastante. E aí você colocava a cabeça no meu colo, dava-me beijinhos, eu suspirava e pensava que queria que o tempo parasse, que toda aquela coberta em cima de nós nos conservasse inteiras por muuuuuito tempo, mas aí a chuva parou, o tempo correu... já não gosto de dias assim. O que me resta, sempre, são só palavras. Nem migalhas, nem abraços e beijinhos e carinhos sem ter fim. Nem amores do tamanho do universo. O que me resta é sempre esse amargo meio doce da vida, essas palavras mudas, esse sonho ardente e meus olhos jogados. Indiscutivelmente são pedaços de mim, feito metade de amor e metade poeira.
Andei por aquele shopping que fomos uma vez. Entrei, os pés arrastando, como na noite do homicídio, desci a escada rolante. Fiz o mesmo percurso que fizemos da primeira vez. Você tinha me apontado um quadro na primeira barraquinha que se avistava. O quadro já não era o mesmo,era outro, não lembro o que, mas era. Passei por ele e na barraquinha ao lado havia um senhor, meio rabugento, que vendia notas e moedas antigas e de outros países. Na primeira vez fiquei um bocado de tempo olhando os catálogos, como se soubesse que da próxima vez não chegaria perto deles, porque precisava correr atrás da sua sombra que dissipava a cada passo que eu dava. Muitas barraquinhas... as outras me passaram como um borrão, eu precisava ir mais rápido para aquelas últimas, no canto. E vi, ali, intactos ainda, os quadros, absurdamente iguais de uma mesma bailarina,o que mudava eram as cores e combinações. Thaís. Você ficou tanto tempo olhando aquilo, parecia que queria ser a bailarina do quadro. O rapaz, que era esposo da pintora, nos apresentou muitos produtos, como se fossemos comprar a loja inteira, mas estávamos ali por nada, dissipando o tempo, combatendo o frio, eu alheia a você e vice-versa. Fui para outra barraquinha que vendia livros, enquanto você ainda conversava com o cara. Perguntei ao senhor que vendia os livros se ele já havia lido O Capital- Marx, e ele me disse que sim, todos os volumes. E começamos um papo bem longo, tanto quanto o seu com o rapaz da mulher que pintava a mesma bailarina. Muito tempo, e aquele senhor me falava muitas coisas, até me deu um filme de presente, que segundo ele, distribuía para as pessoas, como uma forma de " dominar o mundo". Você juntou-se a mim, mas não se interessou pelo assunto e saiu logo, foi ver outras coisas. Não era o mesmo senhor que estava na barraca. Havia dois agora. O rapaz das bailarinas era o mesmo. Nunca me viu na vida. Pedi para fotografar os quadros...uma foto, Disse a ele que era pessoal, particular. Coitado, achou que ia roubar alguma coisa, direitos autorais. Não, meu bem, eu só queria resgatar alguma coisa que ainda havia dela. Mal sabe que a namorada dele um dia, longe ou perto talvez, vai quebrar cada quadro no coraçãozinho dele. Amargo e belo. Tudo bem, me despedi e fiz o trajecto. Tudo muito frio como da primeira vez. Muitas pessoas, alguns adesivos de parede da Audrey, que eu particularmente colocaria bem na porta do meu quarto. Como me doía cada canto dali. Como ela me doía num céu tão lindo daquele. Eu não era eu. O perfume de cupuaçu me entrava, muito rápido pelo nariz e sumia, na mesma velocidade. Vi muitas de você pela rua. Rezava para te ver, de longe, naquela multidão, um fio de cabelo que fosse. Mas era outras, completamente diferentes. Eu até apressava o passo para conferir. Não eram mesmo. Porque essa sede de resgatar lembranças? Eu inteira sou lembranças. Saudade. O que vem depois é um espelho de agora. Lembranças. Fugi. Fugiria de mim, se pudesse. Não aguentava mais me torturar. Mas era tão difícil, querendo ou não, doendo ou não, era o único remédio. Parece mertiolate.
Quase uma semana. Recuperei-me consideravelmente. Quando já passamos por essas coisas, parece que nosso corpo cria anti corpos. A saudade é muita. Aceito essa proposta. É sempre um desafio. Ela é livre. E ser livre é uma beleza nossa. O tempo. Nos traz, e também nos leva. O coração continua.
E ainda metade é amor... e a outra é poeira.

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