quarta-feira, 23 de abril de 2008

Póstumas palavras de cinzas.

Morram,meu senhores,morram. O dia acordou belíssimo,como acorda um bebê choramingando à noite.
Digam-me,ó meus irmãos,o que devo fazer hoje? Sair da rotina?
Vou falar com alguém. Eu nem sei o que escrever e escrevo mesmo para dissipar o tempo,para dizer que quando me alegro,escrevo;e quando escrevo é porque meu interior solitário e pensativo necessita expressar-se em míseras palavras que saem sem nexo ou vontade.
Quando eu morrer,quero que escrevam para mim,em folhas amarrotadas de papel amarelo,em folhas lindas e sedosas,em pedacinhos mínimos de folha de caderno e joguem comigo na minha cova ou queimem junto a mim,e então assim,na terra semeada de letras e papéis,estarei tão contente quanto pálida. É um desejo...por favor,pelo menos isso é o que eu peço,já que o medo de me abraçar e manter algum contacto é deveras assustador. E escrevam palavras bonictas,dignas de alegria e de um sol ameno num dia de outono,sem tormentos ou lamentações,nada de saudade. Saudade só se tem de quem se vive longe,mas vive; e já que não tiveram saudade alguma de meu ser em morte lenta em vida,que não tenham do meu ser em morte fixa em morte. É apenas um comentário que me deixa alegre,por saber que morrerei junto a papéis e palavras (dignas ou não,eu não saberei). Mas acho que ficar embaixo da terra,morta e sendo comida por vermes,não é de todo muito alegre. Pensem,meus senhores,a morte é um passo para a liberdade,é o auge de libertação corpo-alma de nossa mínima vivência, e,nessas condições,depois de se alcançar(no mais triste porém melancolicamente alegre) esse caminho inevitável,ser enterrada a lágrimas e a choros,num caixão meia boca feito por algum carpinteiro alheio ao facto,e ficar eternamente intacta num lugarzinho abafado e habitado por vermes,depois de ser velada e exposta a rostos nunca dantes vistos,é deveras muito incômodo. Incômodo em vida,imaginem depois de liberta. Não,não mesmo. Acho que o mais certo a fazer,senhores membros do júri,é doar meus órgãos usados exclusivamente por mim ( e só por mim) e salvar a vida de algum imprudente ou algum infeliz que teve o destino irônico. Depois então,de feito isso,(por favor,não esqueçam das mensagens nos papéizinhos),minha carcaça oca e pálida será queimada e minhas cinzas jogadas ao vento em algum vale florido e verdejante. Nada de mar, é muito clichê. Detalhe: outono. Nada de inverno,verão ou primavera.
Sem contar que,sempre em aniversário de morte ou feriados (esses feriados católicos e que festejam a morte ou ressurreição,Sexta-feira Santa,Sexta-feira de Cinzas etc) há os parentes que te levam flores (de plástico para não murchar) no seu último e eterno leito do cemitério. Pra quê? Levem flores descentes,Amarilis,Flores de Cerejeiras,gravetos secos...! Os vivos insistem em ter alguma ligação com o defunto e se esquecem da libertação. Por esses factos deveras muito insignificantes,quero meu corpo em cinzas(Cinza azulado pálido,Cinza-céu-nublado).Não quero ninguém na minha cova aos prantos;quero o quanto antes (depois de habitar o céu com anjos e arcanjos tocadores de harpa) me ver livre e alheia a esse mundo humano e cruel,ó meus senhores coveiros. E quando minha essência atingir o azul celeste ( ou vermelho ultraviolento das ilhas submergidas),serei apenas um nada num lugar que eu nem sei se existe. Um lugar que eu nem sei se existe,olha só.
Bem,de qualquer modo,ainda serei lembrada,se não por mim mesma agora em vida,mas por algum insecto voador que me atormenta nos ouvidos (coitado,morrerá em 24 horas apenas).
Senhores e senhoras,aplaudam com furor cada palavra escrita no dia de meu óbito digno de outono. É só um dia.No outro tudo começa de novo e acaba para algum número terrestre.
Nada como um novo dia para esquecermos nossos tormentos próprios do dia de ontem.

3 comentários:

AHF Campos disse...

N'algum Lugar.
Acho que não tenho muito o que discertar. Tantos já foram os elogios que te enviei e que agora, sinceramente, não valem para muito.
Não sei quando poderemos nos ver, mas se depender de mim, todos os seus desejos, em vida ou em morte, serão realizados.
Admiro-me.
Com o passar do tempo vejo o quanto você tem de especial e doce, sua sensibilidade absorve cada sopro de vida e isto é belo e assustador.
Um abraço do tamanho do universo e toda as alegrias possíveis.

De seu amigo distante mas fiel,
André.

AHF Campos disse...

Uma dúvida:
Em outra ocasião lhe explico o por que, mas gostaria de saber o nome da sua mãe e de sua avô
?
Me envia a resposta.

Mil outros abraços,
Humbert.

AHF Campos disse...

Belíssima frase:

'sem tormentos ou lamentações, nada de saudade. Saudade só se tem de quem se vive longe, mas vive; e já que não tiveram saudade alguma de meu ser em morte lenta em vida, que não tenham do meu ser em morte fixa em morte'

Parabéns!!