quinta-feira, 17 de abril de 2008

Conto vinil cor de vinho

"O vinho faz esquecer as maiores preocupações."

Sêneca



Bebi o vinho na noite semi-fria quanto abafada na minha blusa de lã azul marinha. Ontem mesmo,antes de ir para a aula,planejei calmamente(porém ansiosa) meu momento único e solitário. Como havia dito,esse meu desejo repentino veio com tanta força,que eu não podia adiar os goles extasiantes.

Deixe-me,ó caros senhores alcóolicos anônimos,falar-lhes sobre o tal ocorrido .

Saí de casa com o cabelo molhado,o sol estava se pondo e o céu no seu laranja roseado mesclado aos poucos com o roxo acinzentado azul muito escuro.Ninguém imagina o prazer que é ver essa natureza tão bela (quanto esgotada),produzir seus quadros momentâneos no céu passivo e bonzinho;e ninguém imagina ainda o quanto isso me deixa deveras muito sorridente,como uma criança boba jogando bola em pleno sábado ensolarado,com o seu pai que há muito não o via. Minha idéia fixa de tomar vinho encorajou-me ainda mais,eu sabia que não adiaria isso para outro momento,porque tinha de ser e eu precisava. Ah,não,senhores leitores incompetentes,não sou nenhuma alcóolatra,mas amo tomar um vinho socialmente comigo mesma(porque até agora não tive oportunidade de tomar com uma companhia agradável ) e há tempos que não tinha essa iniciativa de beber. Aliás,não vivo mais a época em que eu e meus amigos reuníamos para nos "embebedar" ,em qualquer praça da nossa cidadezinha do interior(que como muitos sabem,cidadezinhas do interior têm muitas pracinhas com banquinhos aconchegantes e simples,onde,à tarde,velhinhos com o chapéu solto na cabeças mascam fumo e jogam milho para as pombinhas).Ah! Éramos adolescentes filosoficamente chegados a uma bebida,eu em particular não gostava das destiladas,enojavam-me deveras. Comprávamos vinho,cerveja,vodka,canelinha,menta e tudo o que os meninos queriam. Disse "meninos",porque eu era a única menina da turma,que era constituída por mais uns sete meninos. Tudo bem,nós convidávamos mais uma menina para sair e tivemos um "rodízio" de alguma companheira para nós,mas eu era a fixa.Cada temporada uma menina nova saía conosco.E cada uma era a menina que o meu amigo beijava,assim,nos momentos em que ele achava que amava a menina;e como o "amor" sempre acabava,arranjavamos outra para nosso passeio nortuno e musical. Esqueci de mencionar que tínhamos membros do grupo que tocavam algum instrumento como: violão(todo mundo tocava violão),pandeiro,bateria,cavaquinho,chocalho e tudo quanto arranjavamos para nos divertir e cantavamos nosso rock n roll antigo,fazendo dancinhas e bate cabeça;e ríamos e conversávamos coisas existencialistas como inúteis. Ah! Eu poderia passar o dia todo escrevendo sobre esses momentos,mas eu devo voltar para o ícone principal desse texto,que é a minha pequena saga do vinho (prometo que escreverei um capítulo sobre a boemia tatuiana juvenil).

Cheguei no ponto de ônibus e uma menina gorda e com o nariz entupido perguntou-me se o ônibus demoraria,porque ela precisava ir para a rodoviária pegar o último ônibus para alguma cidade que eu não lembro. Mas ainda faltava uma hora para a saída,e até lá levaria uns vinte minutos.Disse a ela que o ônibus não demoraria e ela agradeceu com sua voz fãnha.

Entrei no ônibus e segui até o ponto desejado que fica uns trinta metros da minha escola. Há um bar pra cima da escola e foi lá que entrei sorrindo por dentro das minhas entranhas dependentes.Pedi educadamente um vinho barato,quando a mulher,numa expressão de receio e medo passivo,perguntou-me a minha idade.

- " Você é maior de idade?"

- " Não senhora,mas falta uma semana para eu fazer dezoito anos"

- " Sinto muito,mas não posso vender para menores"

Fiquei com uma cara de pai de família que calcula errado o dinheiro do final do mês e se sente incapacitado por tamanho erro. Mas no meu caso,eu poderia dar um jeito.

- " Os fiscais estão em cima da gente,só aceitamos com o documento"

- "Tudo bem,senhora. Muito obrigada"

E saí indignada com a situação. Eu sou muito a favor de não vender bebida para menores de idade,mas naquele momento eu estava indo muito contra isso. Sou menor e contra essa lei ridícula,mas daqui uma semana,serei totalmente a favor de não venderem álcool para esses pervertidos dependentes juvenis,e apoiarei a fiscalização nas ruas.Proibir apenas não adianta,todos sabemos que o tráfico de drogas é o que mais gera dinheiro no país,assim como o tráfico de armas e esse contrabando todo.O que qualquer dolescente menor faria era encontrar um amigo mais velho e pedir que comprasse a tal bebida alcóolica... e foi o que eu fiz.

Não muito desesperada,desci a rua inteira a procura de um amigo. Até que tive a brilhante idéia de descer até o conservatório e lá encontrar alguém bondoso e querido. Fiquei na frente esperando alguma alma conhecida até que de repente surge minha iluminada irmã-amiga,faltando dez minutos para começar sua aula de dramaturgia. Disse a ela para comprar um vinho para mim,pois,como eu era menor,não podia. Ela,depois de muito insistir,aceitou e foi comigo ao bar mais próximo que ficava do lado da rodoviária (onde aquela gorda de nariz trancado deveria estar esperando o seu ônibus). Ah,meus senhores,não havia o vinho que eu queria,só o Dom Bosco (que não deixa de ser bom,por ser um vinho barato) e como era o único que tinha levei aquele mesmo,pois já estava de bom tamanho para minha sede duradoura desse líquido.Acompanhei-a até o conservatório onde sentamos num banco debaixo de uma árvore em crescimento,e conversamos sobre assuntos que só nós entendemos e abominamos. Eu,com o canudinho na garrafa,deliciava meu suco de uva. 880 mililitros de vinho. Achei que fosse beber tudo,assim,para ter certeza de minhas alucinações ridículas,mas não cheguei nem na metade e já começou um enjoo pequeno. 7 e 15 da noite:ela estava quinze minutos atrasada e eu ainda tinha que entrar na segunda aula. Subi até os aposentos de artes cênicas,com a garrafa na mão,como uma criança bebendo refrigerante depois de um dia cansativo de brincadeiras. Vi com grande nostalgia,através da porta que se fechava,os meus amigos teatrais sentados em roda esperando a ordem do professor para começar uma atividade. Esse grupo que eu fazia parte,mas abandonei por priorizar outra coisa,outro futuro,outro enigma.Enfiei o vinho na mochila,depois de levar um breve xingo da professora,que disse-me que não pode bebidas alcóolicas dentro daquela escola.

Saí do conservatório e apressei-me até a escola,com esperança de poder dar mais uns goles antes de começar a aula. Sim,consegui dar mais alguns goles e enfiei na mochila a garrafa. Subi três andares de escadas ( não sei porque não colocaram elevador naquela escola),meio feliz,meio aliviada por desfazer um pouco da minha seriedade conservadora. Assisti as aulas numa calma e a alegria que eu não havia experimentado.
O facto é que,eu achei que eu ía me embebedar horrores com aquilo,mas isso não aconteceu. O que por um lado é muito bom,pois não passei mal,nem fui até o Conselho Tutelar por ficar bêbada e levar bebida na escola (caso alguém me denunciasse). Mas eu queria ter ficado um pouco mais alterada,acho que eu sei meu limite,mesmo querendo ultrapassa-lo.Ahhhhh!! (suspiro) O resto que sobrou,ainda pude bebericar no outro dia,sozinha,sentada no banco da praça,com uma luz muito fraca sobre mim,onde eu terminava de ler o meu livro que já deveria estar terminado. Só que como era pouco,não fez efeito algum.Talvez se fosse uns três anos atrás,eu estaria muito alegre com aquela quantia miserável.
Não posso ficar comprando vinhos baratos todo dia que for para aula. Não posso me basear nisso para ficar mais aliviada e jogar,como uma bola quebra a janela,metade do meu medo e seriedade fora.Dormi muito bem nesses dois dias,confesso. Fui para a cama sem pensar horrores de uma vida,sem imaginar pessoas que eu queria,sem me martirizar por não fazer as coisas. Mas também não posso dar todo o crédito,para o aquele vinho(embora tenha uma enorme parcela nisso).
Então eu elogiei uma menina muito bonita que havia na minha frente. Elogiei-a para alguém do meu lado,mas pensei comigo como ela tinha um sorriso encantador,os cabelos longos jogados nas costas,ela conversando com um rapaz que eu nem imagino quem seja,mas deveria ser algum zé ruela sendo simpático tentando agradar a bela menina que escutava,sorrindo,suas palavras que eu não ouvia,e tudo parecia uma música em torno dela: ela no primeiro plano e um borrado de pessoas atrás,em camera lenta.
Ah,vinho! Degusta-me no seu mais gelado estado de sobriedade,e faz-me a mais insana das criaturas!

Um comentário:

AHF Campos disse...

Sai nos jornais:
[Cineasta adapta o conto da grandiosa Cassia oliveira para os cinemas].
A plateia:
BRAVO BRAVO BRAVOOO GOSSSSTOSA!
[EU, O CINEASTA, DANDO ENTREVISTAS]
- Cassia Oliveira é sem dúvidas, uma das maiores escritoras do pós-modernismo... (continua). Rsrss.

Adorei, minha linda-irmã-mestra-amiga-confidente-(continua).
Seus textos estão cada vez maiores, sem comentar a sinceridade da menina bonita. !
C.A.D.E.
HUMBERT LOU. Lembra?
Bjos.