domingo, 24 de janeiro de 2010

Abacate


Para ouvir com Edith Piaf - La Java Bleue

Um carrossel luminoso girava docilmente, com seus cavalinhos brancos e roseados, junto com meu cabelo que voava entre o vento e a música. Era quase tudo preto e branco, se não fosse minhas duras piscadas de olho para ter certeza que aquilo era bem colorido, para também tirar um cisco do meu olho. Desci um pouco tonto do carrossel e caminhei até o senhorzinho que vendia algodão doce. Pedi um. Ele me deu gentilmente o algodão doce cor de rosa, felpudo e apetitoso que enrolei entre meu dedos e logo derreteu-se na minha língua. O carrossel ainda girava. Outras crianças brincavam ali. Outro grupo jogando estalinhos no chão, enquanto os adultos riam de suas travessuras. Engraçado como todos os pais acham lindo as travessuras dos filhos. Pensei que quando eu fosse pai eu talvez fosse gostar disso, mas não sei, ainda não tenho filhos, sou pequeno e mal alcanço os pés no chão. Minha mãe estava sentada do outro lado do parque junto com meu irmão mais novo. Ela estava cansada de andar tanto e então me deixou ir sozinho em todos os brinquedos.
  Eu sempre gostei de parques. Apesar de um frio na barriga e pessoas altas e estranhas, aquilo me agradava. Do que eu gostava antes de gostar de parques? Sorvetes? Leite materno.
Carrinho de bate bate. Pirulito que bate bate, pirulito que já bateu, quem gosta de mim é ela, quem gosta dela sou eu. Foi quando olhei em volta, quase perto da fila do carrinho de pipoca ( doce ou salgada), que vi uma menina, no seu vestido meio ralo e um laço de fita no cabelo. O laço era amarelo esverdeado, talvez mais porque eu quisesse do que por própria natureza, na verdade eu não lembro a cor. Meus olhos passaram sobre ela e voltaram quase rápidos para olhar os pés. Apenas segui o olhar dela e ela olhava para o chão. Nos pés uma sandalinha branca e encardida da terra do parque. Mais nada. Alguns ventos de poeira sopravam e ela levantou a cabeça para poder coçar os olhos, um cisco talvez, e olhou-me sem querer, enquanto eu enfiava com muita gula um pedaço gigante de algodão doce dentro da minha boca. Engoli com pressa olhando pra ela. A menina só me olhava, indiferente, poderia ter sido qualquer um. Pigarreei um pouco e fiquei um tanto envergonhado porque percebi, olhando para o algodão doce, que ela ainda estava olhando para mim. Não sei se olhos vidrados ou olhos de pensamento, desses que passa tudo pela frente e a gente continua vendo uma nuvem de ideias. Engoli outro gigante pedaço. Olho ou não olho? Olhei pro chão e vi meu pé também encardido do vento de poeira do parque. Uma poeira vermelha. Fingi tirar uma pedrinha do pé e olhei de soslaio para ela. Ela já tinha se virado. Voltei para agora tirar mesmo uma pedrinha repentina no meio no meu dedinho. Levantei, satisfeito. Ela parou de me olhar.Um constrangimento grande para uma criança em pleno parque de diversões. O algodão estava acabando. Levei bem devagar o último pedaço para minha boca grudenta de açúcar quando sinto outra pedrinha me cutucando as costas. Virei-me. A pedrinha era o dedinho miúdo da menina. Olhei-a, o mesmo olhar vidro-pensamento, achei que eu fosse o objeto especial, especial num mal sentido pra mim, eu não queria mesmo ser um centro de atenções num parque, eu queria vomitar na montanha russa e ficaria muito alegre se ela estivesse na minha frente. Meus dedos dos pés afincaram um pouco no chinelo e olhei também tentando ser um olho de vidro de pirata.  Perguntei o que ela queria, um pouco bruto talvez.
- Oi! - engasgando
- Você deixou cair sua pedrinha
- Que pedrinha?
- Sim, esta.
  Era uma pedra qualquer do chão. Cor de abacate podre. Assim como os olhos dela. E disse a ela que não era minha. Obrigado!
- Achei que fosse sua. Eu tenho uma ... e é da sorte.
  Pouco me importava. Eu ainda estava com medo dos olhos de menina e queria correr me enfiar dentro das pipocas.
- Mas não é.
  Dei um passo para trás e mencionei que eu sairia, com um sorrisinho amarelo. Ela parada. Suspirei. Andei alguns passos e a vi do meu lado, andando comigo. Nossos passos sincronizados. Pedrinha? pensei. Cadê a mãe dessa menina?
- Você gosta de algodão doce?- perguntei, numa pergunta qualquer de criança.
- Gosto muito.
- Quer um?
   Ela fez cara de quem queria, mas não poderia aceitar. Não disse nada. Eu também não. Pedi dois algodões doces. Um branco e um cor de rosa. Não, um verde, quase borbulhante e um branco, quase empoeirado. Não sei qual eu daria a ela. O verde, porque ela parecia um abacate amassado com açucar e o branco empoeirado, parecendo os pés dela. Talvez os dois.
- Qual você quer?
- O verde.
  Claro que era o verde. Senti uma poeira doce na minha boca. Me revirou meu estômago. Corri para encontrar minha mãe e ela ainda estava sentada no mesmo banco, meu irmão quase dormindo no meio daquela multidão e luzes e som. Havia deixado a menina pra trás. Sumiu. Voltei ao carrossel, meio zonzo. Tudo era preto e branco de novo, exceto a fita amarelo-verde-abacate da menina, que havia voado do seu cabelo e pousado sem querer bem na crina do meu cavalinho. 




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