começo encontrando um pêlo de cachorro na minha blusa preta, mas isso não tem a ver com o que direi em seguida.
Garoava. As pessoas são como livros. Só a descobrimos se as lemos. Caso contrário, nada sabemos delas, estão sempre fechadas, não existem.
Muitas andando pela rua, enquanto eu, encostada numa parede no ponto de ônibus, as olhava com uma tal frieza de que nunca antes havia sentido. Eu amargava cada garoinha, entristeci, eu também era um livro fechado, eu me rabiscava por dentro... e ninguém me via.
Subia, com um colete de "save the children", uma moça, cuja qual, assim que olhei fechei ainda mais minha expressão. Eu sentia que ela pararia pra me fazer perguntas, mas sei lá, não, não, essas pessoas são chatas, eu nem havia salvado a criança que estava em mim ainda, ou nem havia matado de vez todas as teorias acumaladas durante essa vida curta, de repente senti uma raiva dela, ela me abordaria, não era o momento, a garoa garoava e a moça andava um pouco rápido quando, eu com medo de olha-lá, a olhei nos olhos e ela sorriu pra mim. Ela sorriu pra mim. Ela me leu naquele momento, meus olhos se encheram de garoa, meu livro todo se espatifou no chão virando as páginas ao vento, molhando, derretendo... e passou.
A olhei de costas, ela não viraria. Eu queria correr atrás dela, me salve. Talvez eu tenha sido a única criança que ela tenha salvado realmente na vida. Só por uns instantes.
De resto, a vida ia mesmo como nunca imaginei que fosse, a gente nunca imagina nada do que é, o que parece ser mas não é, o não ser, o não parecer.
Eu não sei onde estou, e a cada momento não sei mesmo quem eu sou. Sou eu em relação a quem? A mim mesma? A alguém? Aos outros?
Um cabelo longo e ruivo com uma máscara de médico na cara, de repente.
Que conclusões tirar da vida?
Eu era uma mar de perguntas, as respostas talvez viessem juntas, como o sal, mas ardiam.
- Alô! Acorda. Olha pra sua vida, a sua... o que é a sua. Não a minha, nem a dela.
É esse o problema. É isso que não está direito, se é mesmo que sei o que é direito.
Na verdade as duas dizem a mesma coisa. Na verdade eu já estava mesmo sozinha sem ninguém e assim eu acho que não machuco mais. Hoje, ao me enxugar no banheiro, tentei me imaginar num quarto de hotel de frente pro mar, sozinha, palmeiras, areia. Mas era o meu banheiro mesmo, com restos mortais de sujeiras alheias, uma coisa meio emporcalhada.
A essa altura talvez nem me importava se era metade ou inteiro, era o que sentia. Não entenda se não quiser.
Imaginamos tanto tudo ao mesmo tempo, só me resta meia hora.
não, o abstrato não serve, assim, de longe, sempre viveremos no abstrato mesmo tocando a pele.
não procuro ninguém, procuro a mim mesma. nem eu consigo imaginar anular uma coisa que é minha, mas ao mesmo tempo soou massacrada duas vezes por que gosto demais. e se eu odiasse?
todas as palavras estão me doendo como agulha
acho que mergulhamos todas num mesmo balde, e esse balde é pequeno, é pequeno pra tudo, nem eu sozinha caiba nele, preciso pular no mar
imaginamos imaginamos
escancarei todas as minhas páginas e agora elas queimam queimam no frio de inverno e verão nada definido. as folhas caem, como no outono.
ahhhhhh
é tudo uma massa amorfa
tudo é nada
a parte isso tenho em mim todas as teorias canalhas do mundo
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